A ESCADA

Sonia Rosalia Refosco de Oliveira

Sonia Rosalia Refosco de Oliveira 

            Toda escada pode te levar para cima ou para baixo. Toda escada te serve para alcançar os lugares onde o simples levantar de braço, não alcança. E, se uma pequena escada salvasse sua vida? Se o simples fato de ela estar aberta no meio do quarto, fosse o motivo para você continuar sorrindo, brincando, respirando, sonhando? Pois é uma história bem assim que você vai ler agora. Os fatos, eu os darei. A conclusão, tire-a de suas reflexões. E, se ao final, achar que tudo é apenas uma coincidência, espero que tenha aproveitado a leitura e não tenha perdido seu tempo.

            “Há já alguns dias os livros viviam empilhados pela sala, quarto, lavanderia, enfim, muitos livros grandes, pesados, pequenos, leves, antigos, novos… Muitos assuntos: história, literatura, português, política, ética, cinema, geografia, religião… Muitos autores consagrados e outros, nem tanto assim. Livros para aprender, ensinar, conhecer, sonhar, desvendar mistérios e alguns até, para fazer dormir.

            Casa de professor é assim mesmo. Não tem dinheiro para roupas, mas para livros sempre há de se dar um jeito. Não tem espaço para peças decorativas, mas para livros, sempre há de se arrumar um canto. E, se a casa for de muitos professores então, aí a coisa complica de vez, porque os livros fazem parte da mobília, estão por todos os lados e mesmo quando há um em duplicata, ali fica para ser emprestado, desde que, é claro, volte são e salvo.

            20160415_181332Os livros, como dizia, estavam empilhados pelos cômodos da casa, porque o pai queria fazer uma surpresa para a mãe: estantes novas, bonitas, com cheirinho de madeira nova e maciça. É verdade que a bagunça dos livros espalhados deixava a mãe meio chateada, mas aquele ar de “você vai adorar a surpresa” estampado no rosto do pai, mandava a chateação embora e aguardava pacientemente a chegada das novas estantes.

            Passaram-se os dias e elas chegaram. Algumas exatamente como o planejado. Outras, nem tanto, mas todas esperadas com muito amor. Preciso explicar que, para um professor que ama os livros, ter um lugar adequado para seu tesouro, não é suficiente. Esse lugar deve ser, além de adequado, bonito, prático, visível e, prontamente eficiente. Para tanto, as estantes haviam sido pensadas para cada ambiente, de forma a trazer beleza que ressaltasse aos olhos e prazer pela leitura que desencadeasse muitas e muitas conversas.

            O pai encheu-se de alegria quando teve a possibilidade de iniciar a arrumação tão esperada. Diga-se de passagem, se há muitos homens que pensam que o trabalho de casa é obrigação feminina, esse não é o caso do pai em questão. Prima pelo trabalho bem feito, pela organização e pela beleza do ambiente. Aliás, uma das coisas que fizeram a mãe apaixonar-se pelo pai, entre tantas coisas, foi o amor à beleza, ao bom e ao verdadeiro. Mas, isso é conversa para um outro dia. Voltemos aos livros…

            Estantes colocadas nas paredes esperam seus importantes inquilinos. Mas, desta vez, por amor à ordem e também à beleza, entre os livros seriam colocados alguns objetos decorativos. Tudo pensado, refletido, levado ao amor extremo. Tudo feito para descansar os olhos e preencher a alma como a frase tão querida: “lares luminosos e alegres”.

            Sim. Um lar luminoso e alegre é aquele no qual cada membro da família tem seu lugar especial, tem seus gostos e preferências despontando em algum canto da casa. Um lar luminoso e alegre é aquele no qual você é esperado ansiosamente e onde é possível descansar o corpo e alma como se estivesse no céu. É o lugar onde você pode ser você mesmo, mas sempre será chamado a ser mais, a crescer mais, a amar mais.

           20160415_181606 Neste sentido iam sendo arrumados cuidadosamente os livros, os porta-retratos e os objetos decorativos: para os rapazes esportes e música, para a menina querida os ursinhos e a cantora do coração, para o menino mais novo, os brinquedos e a bolinha que traz à lembrança o primo querido. Cada livro, cada peça ia passando pelas mãos do pai e encaixando-se perfeitamente na estante escolhida.

            É claro que o pai, como maior detentor de livros da família, precisaria ocupar uma parte de cada estante em cada ambiente, mas isso não incomodaria os filhos. Um lar luminoso e alegre é aquele onde cada um tem seu espaço, mas faz parte do lar por inteiro. Um lar luminoso e alegre é aquele onde há um pouquinho da essência de cada um espalhado pelos cômodos da casa, onde há o perfume de cada um avisando que chegou ou que está saindo.

            Um momento de descanso…. Os livros nessa casa são tão importantes que entre os filhos há uma brincadeira característica da família. Quando um dos filhos traz o namorado ou namorada para jantar a primeira vez, logo vem a pergunta constrangedora: “O que você está lendo”? A pessoa que já não está em uma situação tão confortável, tem um pequeno momento de paralisação. Entre risos e diante do olhar que quase pede socorro, os irmãos explicam a brincadeira ao recém-chegado e falam do famoso Lanterna na Popa, livro grosso, pesado e denso que gerou esse costume familiar para, na verdade, deixar à vontade quem está chegando.

            Pausa terminada, voltemos à colocação dos livros nas estantes.

           20160415_181246O pai ia arrumando os livros no quarto do menino mais novo. Em uma das estantes, foram colocados os livros infantis, em quadrinhos e as coleções preferidas. A bolinha de futebol ganhou um lugar especial e de perninhas cruzadas para ter o Gu sempre por perto na lembrança, no coração e nos olhos.

            A essa altura da narrativa, o leitor deve estar se perguntando onde entraria a escada. Ah!!! Talvez o leitor tenha até se esquecido da escada e tenha esboçado um sorriso, mas a escada tem, como poderão observar, um papel importante neste texto e mais ainda na vida dessa pacata família rodeada de livros.

            A outra estante foi colocada no alto da parede e tomando boa parte dela. Nas prateleiras mais baixas, os livros mais usados pelo pai. Aqueles que embora não sejam tão vistosos estão carregados de bons conteúdos e que sempre levam à boas reflexões e excelentes conversas. Nas prateleiras do meio iam sendo arrumados os livros menos requisitados, mas não de menor importância. No alto, pastas, trabalhos, livros maiores, revistas, enfim aquilo que se usa bem menos, mas que precisa ser guardado. Para estes foi necessário o uso da escada.

         
A escada foi colocada estrategicamente entre a cama e a mesa de estudos para auxiliar na arrumação ordenada do restante dos livros mencionados. Muitas idas e vindas do quarto para a sala, da sala para o quarto. O pai cuidadoso ia olhando, revendo, limpando, organizando. Tudo para deixar o quarto agradável, bonito e prático. A escada parada, assistia tudo e não dizia nada, parafraseando a velha canção de tempos idos.

            O tempo foi passando e o menino queria brincar em seu quarto. Viu o pai indo e vindo várias vezes e pensou que já dera tempo para acabar o trabalho minucioso.

20160415_181235Foi ao quarto com seu jogo de Torre Copos, ansioso por brincar na mesa de estudos. Torre Copos é o jogo do momento. Uma febre entre os garotos. Agilidade e concentração. A meta é quebrar o próprio recorde e isso não pode esperar muito tempo…. Muitas coisas não podem esperar muito tempo quando se tem dez anos.

            Como eu dizia, o menino chegou ao quarto ansioso por tentar quebrar seu recorde. Precisava treinar mais. Mas, o que encontrou desanimou-o um pouco. Lá estava ela… a escada. Bem em frente a sua mesa. Aberta. Parada. Ocupando espaço. Tirando dele o momento de brincar. Arrancando dele a diversão. Ah! A escada…

            Poderia tê-la fechado e tirado do lugar. Poderia tê-la afastado um pouco. Poderia ter perguntado ao pai se já havia acabado o trabalho. Poderia…, mas, não fez. Foi-se embora para a sala com seu jogo nas mãos. Um olhar meio tristonho, mas o que fazer? Tudo bem. Assistir Ben 10 era uma opção. Não era o desejo maior, mas mais tarde quebraria seu recorde. E ele sentou-se no sofá para assistir a mais um episódio do menino que vira Quatro Braços.

            Um estrondo.

            – Que barulho foi esse? A geladeira caiu? Brincou o irmão mais velho.

        A mãe achou que o barulho era do andar de cima. O pai saiu em busca de algo. Silêncio. Só Ben 10 era ouvido nesse momento.

            A mãe vai ao quarto do menino para levar alguns livros e fica estarrecida diante do que vê.

            A estante havia se desprendido da parede e desabado sobre a cama. Tudo quebrado. Tudo espalhado e desarrumado. Todo trabalho desmoronado. Tempo perdido e desperdiçado. O peso enorme da estante cheia de livros levou a cama abaixo. Num instante o trabalho do dia viu-se arruinado e entre os escombros culturais lá estava ela… a escada. Caída ao lado da parede como a observar o desastre que acabara de acontecer.

            A mãe, ainda atônita, pensa na tragédia que poderia ter acontecido se alguém estivesse no quarto. Chega então o menino e, pálido diz para a mãe: “Deus me deu uma chance, né? ” Foi assim que ela soube o episódio da escada.

            – Sim, meu filho. Deus deu uma chance para você e para mim. E pensativa, chorou. Abraçou o filho querido e agradeceu o bem que recebeu.

            Todos colocaram-se a levantar a pesada estante e recolher os livros caídos pelo quarto. Um a um iam sendo retirados. Abertos, amassados, inteiros, fechados, jogados, mas todos sãos e salvos… assim como o menino…

            A mãe retira, então, a escada do quarto. Passa vagarosamente a mão sobre ela e pensa na maravilha que foi uma escada deixada no meio do caminho, a atrapalhar e impedir uma simples brincadeira de criança.

              20160415_181030A bolinha de futebol, caída no canto do quarto ainda estava de perninhas cruzadas. Volta para seu lugar de honra. O quarto não está tão bonito. A parede mostra os buracos dos parafusos que não estão mais ali. A cama está arrebentada.

             Os livros voltaram para o chão da sala. Empilhados nos cantos revelam uma certa bagunça e desordem. Mas quem se importa? O menino está sorrindo, respirando, sonhando e brincando.

               E as estantes? As estantes? Quando der, a gente arruma.

 

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