O QUE É O “ORDO AMORIS”?

Comentários de JD Vance sobre o amor cristão geram debate. (1)

Embora você não encontre os termos no Catecismo da Igreja Católica, o padre dominicano Pius Pietrzyk disse que o conceito é sólido.

JD Vance – Vice-presidente dos EUA

O vice-presidente JD Vance invocou em uma entrevista na quinta-feira o conceito católico de “ordo amoris” — “amor corretamente ordenado” — no contexto do debate social em andamento sobre a política de imigração, gerando uma variedade de reações nas redes sociais. 

Em entrevista a Sean Hannity, da Fox News, Vance opinou, estimulado por Hannity, que “a extrema esquerda” nos Estados Unidos tende a ter “mais compaixão” por pessoas que residem ilegalmente no país — incluindo aquelas que cometeram crimes — do que por cidadãos americanos

Como um líder americano, mas também como um cidadão americano, (digo que) sua compaixão pertence primeiro aos seus concidadãos. Isso não significa que você odeia pessoas de fora de suas próprias fronteiras”, disse Vance em 30 de janeiro.

“Mas existe esse [conceito] da velha escola — e eu acho que é um conceito muito cristão, a propósito — de que você ama sua família, depois ama seu próximo, depois ama sua comunidade, depois ama seus concidadãos em seu próprio país e, depois disso, (2) você pode focar e priorizar o resto do mundo,” disse ele.

Ele continuou: “Muitos da extrema esquerda inverteram isso completamente. Eles parecem odiar os cidadãos de seu próprio país e se importam mais com pessoas fora de suas próprias fronteiras. Essa não é a maneira de administrar uma sociedade.”

Rory Stewart

Mais tarde naquela noite, Vance respondeu nas redes sociais a um professor e político britânico, Rory Stewart, que criticou os comentários de Vance como uma “visão bizarra de João 15:12-13″ e como “menos cristão e mais tribal pagão”. (O versículo bíblico referenciado por Stewart diz: “Este é o meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros, assim como eu os amei.”)

Basta pesquisar no Google ‘ordo amoris’”, escreveu Vance em resposta.

Além disso, a ideia de que não há uma hierarquia de obrigações viola o senso comum básico. Rory realmente acha que seus deveres morais para com seus próprios filhos são os mesmos que seus deveres para com um estranho que vive a milhares de quilômetros de distância? Alguém acha? “ (…)

Padre Pius Pietrzyk

Embora você não encontre os termos “ordo amoris” no Catecismo da Igreja Católica, o padre dominicano Pius Pietrzyk, advogado canônico e professor, disse à CNA que o conceito é bem estabelecido e é “evidente tanto pela revelação quanto pela razão”.

Santo Agostinho, em sua obra clássica Cidade de Deus, oferece o termo “ordo amoris”, frequentemente traduzido como “amor corretamente ordenado”, como uma definição para o conceito de “virtude”. 

Agostinho, um dos primeiros bispos e teólogos muito influentes, expandiu o conceito de “ordem do amor” em sua obra Sobre a Doutrina Cristã .

Santo Agostinho

“Agora, é um homem de vida justa e santa aquele que forma uma estimativa imparcial das coisas e mantém suas afeições também sob controle estrito, de modo que não ama o que não deveria amar, nem deixa de amar o que deveria amar, nem ama mais o que deveria ser menos amado, nem ama igualmente o que deveria ser amado menos ou mais, nem ama menos ou mais o que deveria ser amado igualmente”, escreveu Agostinho em Sobre a Doutrina Cristã .

São Tomás de Aquino

São Tomás de Aquino — um doutor da Igreja do século XIII — em sua Summa Theologica citou e expandiu a obra de Santo Agostinho, escrevendo que deve haver “alguma ordem nas coisas amadas por caridade… em referência ao primeiro princípio desse amor, que é Deus”. 

Aquino definiu essa “ordem da caridade”, ou “ordo caritatis”, como um princípio que dita como devemos amar a Deus, a nós mesmos e ao próximo de forma hierárquica e interconectada. Ele citou Agostinho para argumentar que, embora se deva amar todas as pessoas igualmente, deve-se considerar “principalmente” aquelas que estão mais intimamente unidas por razão de lugar, tempo ou outras circunstâncias.

Na análise de Tomás de Aquino, ele conclui que Deus deve ser amado em primeiro lugar, seguido por si mesmo, depois pelo próximo e, entre os próximos, ele escreveu que há aqueles que devem ser amados com uma afeição mais intensa, como a família.

A hierarquia estabelecida por Aquino não pretende diminuir a importância de amar todas as pessoas como Cristo ordenou, mas reconhece que certos relacionamentos, falando de forma prática, carregam obrigações mais imediatas. Por exemplo, uma pessoa casada tem uma obrigação maior de cuidar de seu cônjuge do que de outros e uma obrigação de prover seus próprios filhos antes de prover aqueles em outros lugares.

O padre Pietrzyk disse que, embora a totalidade do conceito de “ordo amoris” não seja um ensinamento “revelado” diretamente de Deus, alguns aspectos dele o são — o dever de cada pessoa de honrar seu pai e sua mãe, por exemplo, é encontrado nos Dez Mandamentos. 

Como uma questão de lógica, ele continuou, o dever de “amar o próximo como a si mesmo” depende de um amor prévio a si mesmo.

“É claro que tudo isso pressupõe um amor a Deus como base para todo outro amor. A revelação certamente nos mostra uma estrutura hierárquica de caridade no homem. Os santos Agostinho e Tomás usam a razão para ajudar a entender e explicar mais completamente essa noção”, explicou o padre Pietrzyk. 

Embora o Padre Pietrzyk tenha dito que a existência da ordo caritatis está bem estabelecida, sua aplicação prática é complexa e permite discordância legítima. Ele também destacou que a abordagem de Aquino requer levar em conta certas dificuldades situacionais e necessidades urgentes, especialmente a necessidade maior de um indivíduo no momento.

“Devíamos de preferência, conceder a cada um os benefícios que dizem respeito à matéria em que, falando de forma simples, ele está mais intimamente ligado a nós”, escreve Aquino na Summa.  

“E, no entanto, isso pode variar de acordo com as várias exigências de tempo, lugar ou assunto em questão: porque em certos casos, deve-se, por exemplo, socorrer um estranho, em extrema necessidade, em vez do próprio pai, se ele não estiver em tal necessidade urgente.”

O termo “ordem da caridade” aparece em dois lugares no Catecismo da Igreja Católica; primeiro no parágrafo 2197, no qual a Igreja ensina que o 4º mandamento — “honra teu pai e tua mãe” — “nos mostra a ordem da caridade”. 

“Deus quis que, depois dele, honrássemos nossos pais, a quem devemos a vida e que nos transmitiram o conhecimento de Deus. Somos obrigados a honrar e respeitar todos aqueles a quem Deus, para o nosso bem, investiu com sua autoridade”, continua o catecismo. 

Por fim, o parágrafo 2239 diz:

“É dever dos cidadãos contribuir junto com as autoridades civis para o bem da sociedade em um espírito de verdade, justiça, solidariedade e liberdade. O amor e o serviço ao país decorrem do dever de gratidão e pertencem à ordem da caridade. A submissão às autoridades legítimas e o serviço ao bem comum exigem que os cidadãos cumpram seus papéis na vida da comunidade política.”

Debate nas redes sociais

A menção de Vance à “ordo amoris” desencadeou um debate vigoroso nas redes sociais, com algumas figuras católicas criticando a compreensão e o uso do conceito pelo vice-presidente e outros, incluindo vários teólogos e filósofos católicos, expressando concordância e apreciação. 

Críticas a Vance pelo jesuíta James Martin (3)

Padre James Martin

O padre jesuíta James Martin opinou que os comentários de Vance “[não captam] o ponto da parábola de Jesus sobre o bom samaritano”. 

“A mensagem fundamental de Jesus é que todos são seus vizinhos, e que não se trata de ajudar apenas sua família ou aqueles mais próximos de você. Trata-se especificamente de ajudar aqueles que parecem diferentes, estrangeiros, outros. Eles são todos nossos ‘próximos’”, escreveu o Padre Martin. 

“Jesus frequentemente criticava aqueles que colocavam a família em primeiro lugar”, acrescentou. 

Em uma postagem subsequente, o Padre Martin argumentou que as interpretações da “ordo caritatis” de Aquino que sugerem que se deve priorizar a família antes dos estranhos deturpam tanto a intenção de Aquino quanto a mensagem central do Evangelho. 

“O mandamento de Jesus de amar o estrangeiro não é apenas uma reflexão teológica e não é apenas uma parte importante da nossa tradição, é uma revelação divina. Jesus nos diz claramente que nos portões celestiais, nos perguntarão se acolhemos o ‘estrangeiro’: isto é, alguém que não faz parte da nossa família, alguém que não conhecemos. É assim que seremos julgados, como ele diz em Mateus 25”, escreveu o Padre Martin. 

“(…) “não é sobre o amor seletivo da família, mas sobre um novo tipo de família. E dentro dessa família está o estrangeiro, o migrante, o refugiado. E aposto que Aquino e Agostinho concordariam.”

Michael Sirilla, professor de filosofia na Universidade Franciscana, disse que Vance resumiu a “noção cristã” de ordo caritatis “habilmente”.

(…)

O filósofo católico Edward Feser disse que Vance expressou “a visão correta”.

Edward Feser

(…)“A visão correta (comum a Confúcio, Aristóteles, Aquino e ao senso comum da humanidade em geral) é que nossa natureza social e suas obrigações consequentes se manifestam primeiramente na família, depois nas comunidades locais, depois na nação como um todo, e somente depois disso em nosso relacionamento com a humanidade em geral.”

Notas:

  1. Este artigo foi publicado uma semana antes da carta do Papa aos bispos dos EUA. O conceito que ele defende como vimos, foi criticado pelo Papa e, mais ainda, como veremos, pelos que endossaram completamente o documento do Vaticano. Publicaremos excertos de alguns deles.
  2. Após o último artigo da série procuraremos mostrar que há um mal entendido sobre o tema.
  3. James Martin é famoso jesuíta norte-americano que advoga por uma mudança substancial no tratamento com a comunidade LGBT+. Ele não concorda. por exemplo, que sejam chamados de pecadores ou que os atos homossexuais continuem sendo chamados pela Igreja de atos “profundamente desordenados’. Há muitos artigos sobre seu posicionamento. Ele mesmo escreveu um livro sobre o assunto. “Building a Bridge”.

https://www.ncregister.com/cna/what-is-the-ordo-amoris-jd-vance-s-comments-on-christian-love-spark-debate

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