“Ver os fatos tal como são não é pessimismo, mas realismo. Só assim é possível perguntar a seguir pelo significado desses fatos, de onde procedem e como enfrenta-los”(“A Fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga”)
Afirmei no último artigo que um setor da ala conservadora – que em geral aceitara o conjunto dos ensinamentos do Vaticano II – começou a ter reações afins com o pensamento da corrente tradicionalista. Com efeito, passaram a questionar publicamente atitudes progressistas de irmãos no episcopado bem como certos pronunciamentos do Papa Francisco. Finalmente alguns – como D. Schneider – passaram a apoiar uma revisão do Concílio. Pelo menos em alguns pontos.
Tais questionamentos, sem dúvida alguma, causam desconforto em muitas almas. Alguns os consideram indevidos pois não seria compreensível reparos a um Concílio ou a um Papa. Outros se perturbam diante da resistência por julgá-la com receio de julgá-la de algum modo procedente. Surge a questão: o que fazer?
Sendo uma questão tão dolorida importa que distingamos os modos como tal resistência aparece.
- Em primeiro lugar há os pronunciamentos de altas autoridades da Igreja que sempre estiveram em união com a Igreja e lhe prestaram grandes serviços. É o caso dos 4 cardeais, antes profundamente ligados a João Paulo II e que se dirigiram ao Papa Francisco pedindo-lhe esclarecimentos sobre a Amoris Laetitiae. Não se nota no pedido nada de desrespeitoso e nem sinal de insubordinação.
- Mais complexo é quando determinadas autoridades eclesiásticas e teólogos passam a pedir uma revisão do Vaticano II. Afirmam que a gravidade dos erros teológicos que cresceram fez com que percebessem a ligação destes com textos ambíguos conciliares. Aí estaria a raiz mais profunda da atual crise da Igreja. Crise que estaria sendo aprofundada por determinados ensinamentos e atitudes do atual Papa que consideram estar em choque com o Sagrado Magistério. Resultado: passaram clara e publicamente a se declarar em estado de resistência, ainda que filial ou fraterna. Exemplo disso é o documento assinado pelo cardeal Burke, pelo bispo D. Schneider e outros intitulado “Declaração sobre as verdades relativas a alguns dos erros mais comuns na vida da Igreja no nosso tempo” (1)
- Finalmente temos alguns que, pelo menos em certas ocasiões, têm um modo de se referir ao papa no estilo de certos tradicionalistas mais radicais. São os que fazem críticas a “Bergoglio”.
Razões da resistência
Todo este imbróglio provoca a pergunta: o que aconteceu? Por que tal resistência? Por que altos dignitários da hierarquia católica fizeram questão que ela se tornasse pública?
Se perguntássemos a eles certamente diriam que isso se deve ao avanço e radicalização de ideias, ações e propostas dos progressistas no seio da Igreja. Avanço que lhes teria feito rever seu posicionamento diante do Concílio e que os obrigou a se posicionar diante de um papado considerado progressista.
Aqui podemos levantar outra questão: como é possível que isso tenha acontecido se os papados de João Paulo II e de Bento XVI pareceram ter contido a terrível crise eclesial dos anos 70? Encíclicas, esclarecimentos, atitudes papais não voltaram a colocar as coisas nos eixos? Não pareceu que voltávamos a ter um novo esplendor das verdades católicas?
Aparentemente sim. Tanto é que muitos membros da hierarquia fiéis ao magistério acreditaram que o pior havia passado. Li e ouvi tal visão otimista muitas vezes.
A luta contra certa hermenêutica da ruptura – que contrapunha a Igreja do Vaticano II à chamada Igreja pré-conciliar – acentuou-se no pontificado de Bento XVI. Ele empenhou-se em afirmar que não pode haver uma ruptura entre o que a Igreja sempre ensinou no passado com os ensinamentos do Vaticano II. Ressaltou que este deve ser entendido em continuidade com o magistério de sempre. “Quem aceita o Vaticano II, assim como ele se expressou claramente na letra, e entendeu-lhe o espírito, afirma ao mesmo tempo a ininterrupta tradição da Igreja, em particular os dois concílios precedentes “(2).
Sucede que aqui os conservadores resistentes fizeram um questionamento: se precisamos apelar para tal hermenêutica não é forçoso admitir que isso só ocorre porque há textos do Concílio que são ambíguos? Não são eles que provocaram as divergências entre teólogos e membros da hierarquia e contribuíram para a perplexidade e desconcerto de tantos fiéis?
Nesta linha tivemos em 2008 a publicação do livro de mons. Brunero Guerardini, renomado teólogo italiano, “Concílio Ecumênico Vaticano II: Um debate a ser feito”. Através dele o autor fez uma súplica ao então Papa Bento XVI para que especialistas nos vários ramos da teologia fizessem “uma atenta e científica análise de cada um dos documentos (do Concílio), do conjunto deles e de cada um de seus argumentos” . Em suma, pedia que os documentos conciliares fossem submetidos a exame e se esclarecesse de forma dogmática e definitiva “se, em que sentido e até que ponto”, o Vaticano II esteve ou não em continuidade com o magistério anterior da Igreja (3).
O PONTIFICADO DO PAPA FRANCISCO: ESPERANÇAS E APREENSÕES
“Um Papa que veio do fim do mundo”, declarou o próprio Papa Francisco ao se apresentar ao povo na sua primeira aparição ao povo reunido na praça de S. Pedro. Já ali mostrou seu estilo, seu modo de ser. Muita esperança foi despertada.
Mas, por outro lado, já no início, houve preocupação de certos conservadores. A razão é simples. Viram que o novo pontífice fora muito bem aceito pela ala progressista, aquela que habitualmente lamentava e sabotava certos ensinamentos e posturas de João Paulo II e Bento XVI.
Tal satisfação foi e é expressa com muita clareza em artigos de teólogos progressistas. Eles viram na eleição do Papa Francisco a realização de um sonho que durava mais de uma década: a eleição de um cardeal que seguisse a linha do falecido cardeal Martina, de João XXIII e, principalmente Paulo VI. Papa que iria aprofundar o que consideram a letra e o espírito do Concílio. E isso seria feito de modo irretratável. (4)
Entre os apoiadores, o cardeal Danneels, provocou muita celeuma com certas declarações. Afirmou, alto e bom som, que a eleição do Papa Francisco havia sido combinada previamente através do grupo de Saint Gallen, ao qual pertencia (5). Ora, tal prática seria proibida pela “constituição apostólica” papal. A notícia bastou para que alguns tradicionalistas radicais afirmassem que a eleição não fora válida. Fato, digamos de passagem, que não parece ter base teológica sólida.
Vejamos agora uma série de acontecimentos e declarações que foram criticados pelos conservadores resistentes.
- As viagens
Certas declarações papais à imprensa, durante suas viagens, causaram estranheza e desconforto. Nos meios conservadores e tradicionalistas pipocaram críticas. Inicialmente muita gente procurou dar explicações benévolas, algo sem dúvida mais filial quando se trata de falar do Santo Padre. Disseram que ele fora mal interpretado; que a mídia dava ênfase a coisas secundárias e distorcia outras; que o Papa, muito espontâneo, não se exprimia com rigor teológico porque se preocupava em ser um pastor misericordioso. Finalmente, diante de afirmações tidas como mais chocantes ou temerárias, houve quem admitisse que o Santo Padre havia se equivocado. Contudo, considerou-se que eram falhas secundárias, pessoais, que não implicavam em ensinamento dogmático.
- O sínodo da família
A situação ficou mais grave a partir do Sínodo sobre a família. Por quê?
O primeiro ponto a considerar foi o modo estabelecido para se ter noção dos problemas da Igreja quanto à vida matrimonial nas várias partes do mundo. Bispos de todo o orbe deveriam consultar seus fiéis e conhecer suas sugestões sobre o modo como viam as questões familiares e morais em nossos dias. O Papa desejava que apresentassem propostas para o enfrentamento das questões com um novo espírito, com ênfase na misericórdia e não em preceitos legalistas. Ouvido o povo de Deus, as Conferências Episcopais indicaram dele. Não só bispos, também casais foram convidados. Entre os prelados foram escolhidos diretamente pelo Papa.
O Sínodo foi iniciado em 2014. Sua primeira fase.
Sucede que tal como no Vaticano II, já de início, vários bispos alemães defenderam que a moral católica deveria ser menos legalista e levasse mais em conta a consciência de cada um diante dos preceitos da Igreja. Levantou-se abertamente a possibilidade de permitir o acesso à eucaristia por recasados cujo primeiro casamento não fora considerado inválido. Alguns mais ousados propuseram o mesmo para casais homossexuais que dessem demonstrações de amor e fidelidade. Aí entrou também o espírito ecumênico: foi sugerido que também luteranos poderiam comungar se o cônjuge fosse católico.
O cardeal Kasper fez um pronunciamento que pareceu favorecer tal posição. Houve quem considerasse que suas palavras exprimiam o verdadeiro espírito evangélico, cheias de misericórdia em relação ao pecador.
O documento do sínodo que foi apresentado para votação abrigou a proposta.
Aí surgiu a primeira grande reação, a do cardeal Burke que exclamou: “Esse documento é o mais vergonhoso da história da Igreja”!
Outra reação contra os rumos que o Sínodo parecia tomar foi um manifesto assinado por 50 teólogos e filósofos católicos de renome, entre eles alguns da Universidade de Santa Cruz e de Navarra. Afirmaram que algumas propostas apresentadas estavam em contradição com a moral católica. (6)
O relatório final do Sínodo teve o apoio para quase todas as propostas. As mais ousadas não foram aprovadas. Contudo receberam mais de 50% dos votos. Por pouco deixaram de alcançar os 60% exigidos… Números que deixaram os conservadores preocupados.
A segunda fase do Sínodo terminou em outubro de 2015. Caberia ao papa publicar, depois, o documento final.
- A Amoris Laetitiae
No dia 08 de abril de 2016 foi publicada a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitiae. Recebeu muitos elogios, especialmente por colocar em destaque determinados pontos da união conjugal e da família. Mas, no capítulo 8, uma nota de rodapé causou perplexidades e divisões no episcopado. Houve quem afirmasse que ela não contrariava ensinamentos anteriores da Igreja, inclusive os de João Paulo II, apesar da linguagem não ser tida como cristalina.. Outros, contudo, como certos bispos alemães, o episcopado filipino e a Conferência Episcopal Argentina consideraram que o Papa abrira exceções no campo moral de modo a se permitir a comunhão nos casos propostos pelos bispos progressistas. O Papa Francisco enviou carta aos bispos argentinos elogiando a postura que haviam adotado (7)
As reações e a dúbia
As reações surgiram de imediato. O cardeal Burke voltou à cena com suas críticas. Movimentos pró-vida e pró-família também criticaram a Exortação. Finalmente surgiu uma oposição mais surpreendente. Cardeais anteriormente muito ligados a João Paulo II pediram esclarecimentos ao Pontífice.. Primeiramente de modo privado, depois, publicamente.
Vejam a informação da ACI (Agência Católica Internacional):
ROMA, 14 nov. 16 / 11:11 am (ACI).- No dia 19 de setembro, 4 cardeais escreveram ao Papa Francisco uma carta na qual pedem que esclareça 5 pontos da exortação apostólica Amoris Laetitia sobre o amor na família.
A carta, assinalam os cardeais, “nasce de uma profunda preocupação pastoral” e após encontrar “um grave desconcerto em muitos fiéis e uma grande confusão a respeito de questões muito importantes para a vida da Igreja”.
A missiva, divulgada nesta segunda-feira, 14 de novembro, pelo vaticanista italiano Sandro Magister através do seu site, é assinada por dois cardeais alemães, Walter Brandmüller e Joachim Meisner; o italiano Carlo Cafarra; e norte-americano Raymond Burke.
Os purpurados referem que escreveram ao Papa e ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal alemão Gerhard Müller, em um ato que consideram “de justiça e caridade”, de acordo com o direito canônico e em conformidade com a missão cardinalícia de colaborar com o ministério petrino.
Os cardeais indicam que “o Santo Padre decidiu não responder” à carta e, por isso, interpretam “esta sua decisão soberana como um convite a continuar a reflexão e a discussão serena e respeitosamente”.
Alguns bispos responderam aos 4 cardeais defendendo a Amoris Laetitiae. O Santo Padre achou por bem manter silêncio sobre o assunto mesmo após a publicação da carta
De lá pra cá faleceram dois desses cardeais (8).
Os que restaram continuaram resistindo. E começaram a ter mais apoios.
O Papa continuou pregando a necessidade de uma Igreja em saída, que afirma que tem que ser mais aberta, mais humana, dentro de um novo modo de ser Igreja.
Nos últimos anos as divergências diminuíram ou se agravaram?
É o que veremos no artigo que segue.
NOTAS DO ARTIGO:
2. p16. A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. Joseph Ratzinger, Vitório Messori; trad. Fernando José Guimarães. – São Paulo: EPU, 1985.
3.Brunero Guerardini, falecido em 2017, foi renomado teólogo, professor de eclesiologia e de ecumenismo na Pontifícia Universidade Lateranense até 1993.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/42319-os-grandes-desiludidos-com-bento-xvi
Veja o livro em pdf: https://pt.slideshare.net/epinus/conclio-ecumnico-vaticano-ii-um-debate-a-ser-feito-mons-brunero-gherardini-10503890
Basta ver inúmeros artigos da revista ihu.unisinos. Citaremos alguns deles ao tratarmos da ala progressista
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/566181-milao-e-o-bergoglio-martiniano
5. Mais de 50 teólogos e pensadores católicos criticam o instrumento laboris do Sínodo sobre a família. http://www.infovaticana.com/2015/09/11/instrumentum-laboris-contrapone-la- conciencia-a-la-norma-moral-objetiva/
Publicado também em
6. Carta do Papa Francisco aos bispos argentinos aprovando comunhão para divorciados recasados (com primeiro casamento ainda válido) em casos excepcionais. O ensinamento passa a ser tido como magisterial.
https://www.catholicaction.org/dubia_em_portugues