INTRODUÇÃO
Muita gente tem se assustado com aquilo que parece ser grandes mudanças na atuação da Igreja. São só mudanças pastorais, afirmam alguns. Outros, no entanto, afirmam que tais mudanças visam uma gradual e profunda mudança na substância do ensinamento cristão.
O problema é antigo. Basta vermos o que Bento XVI escreveu a respeito sobre graves problemas ocorridos na Igreja após o Concílio:
(…) “Os Papas e os Padres Conciliares esperavam uma unidade católica, e, pelo contrário, caminhou-se ao encontro de uma dissensão que, para usar as palavras de Paulo VI, pareceu passar da autocrítica à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo, e , no entanto, muito frequentemente chegou-se ao tédio e ao desencorajamento” (1) A Fé em crise, p. 17)
Verdade é que sob os pontificados de S. João Paulo II e de Bento XVI as coisas pareceram voltar aos seus trilhos. Verdade ou equívoco?
De momento, o que tudo indica, é que o furacão progressista que quer criar uma nova Igreja, parece ter tal poder de destruição que seus propagadores parecem não ter mais pejo em mostrar seus objetivos.
Diante deles, cada vez mais, é necessário, que temos que estar bem cientes do que ocorre com o Corpo Místico de Cristo. Afinal, como diz Messori, “nós mesmos estamos envolvidos na aventura da Igreja, neste momento importante de sua história”. Momento em que devemos evitar “hipócritas declarações de impossíveis “neutralidades” (2) .
Para ajudar o amigo leitor a entender melhor a crise de hoje vamos publicar vários artigos tomando como exemplos episódios da história da Igreja tanto antigos como atuais. Começamos descrevendo a crise do arianismo. O texto foi encontrado nos escritos do padre Paulo Ricardo.
A primeira grande crise da Igreja: o Arianismo
“Uma heresia poderosa, nos primeiros séculos do cristianismo, quase devastou a Igreja. Mas, como em todas as outras épocas, Deus não deixou de suscitar grandes santos para defender o depósito da fé e a verdade sobre seu Filho Jesus.
Rodney Pelletier
Tradução: adaptação de Equipe Christo Nihil Praeponer
Conhecer e estudar a história da Igreja é algo que nos ajuda a compreender muitos dos acontecimentos de hoje e nos motiva a ter mais esperança na ação divina. Vejamos um caso particular.
O século IV viu o surgimento da sutil heresia do arianismo — uma negação virulenta da divindade de Jesus Cristo. Hoje isto nos parece “senso comum”: “É óbvio que Jesus é Deus! Como poderia algum cristão dizer o contrário?” No entanto, desde o fim da era apostólica, no século II, até o século IV, essa foi uma doutrina que a Igreja teve de declarar oficialmente para esclarecer a confusão da época.
O arianismo manifestou-se desde o começo do cristianismo. Nosso Senhor mesmo teve de mostrar que não era apenas um profeta poderoso, mas uma Pessoa Divina. Para isso, realizou milagres e falou com uma autoridade jamais vista em um profeta de Israel.
Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Depois de sua ascensão ao Céu, os Apóstolos do Senhor ensinaram sua divindade, desde a pregação de São Pedro em Pentecostes até o Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1). São João viu a necessidade de escrever seu Evangelho — tão notavelmente diferente dos outros três — para reforçar a doutrina de que Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com uma natureza humana e uma divina.
E foi exatamente isso que acabou se tornando um obstáculo para muitos cristãos primitivos. A maioria das heresias que surgiram até o século IV envolviam erros de compreensão acerca de Jesus Cristo.
Esses erros alcançaram seu auge na teologia do padre Ário. Ordenado entre 312 e 313 d.C., em Alexandria, no Egito — um dos maiores centros de teologia cristã do mundo antigo —, Ário tinha uma história de adesão aos erros teológicos da seita lucianista e foi excomungado em 319 por Santo Alexandre, bispo de Alexandria. Apesar disso, ele era conhecido por seu ascetismo e sua pregação. (3)
No centro de tanta controvérsia estava a palavra grega ὁμοούσιος (homo-ousios), que significa “da mesma substância”. Ário preferia a palavra ὁμοιούσιος (homo-i-ousios), que significa “de substância similar” — não igual em dignidade ou coeternidade com o Pai.
Como notou certa feita o grande padre e teólogo jesuíta John Hardon, nenhuma heresia jamais obteve sucesso sem antes receber o apoio de algum bispo católico. Não foi diferente com o arianismo. Embora Ário tivesse sido condenado pelo bispo Alexandre de Alexandria e pelo sínodo dos bispos egípcios em 321, o bispo Eusébio de Nicomédia era colaborador do heresiarca e favorito do imperador Constantino. Com o apelo de Ário ao poder político, em questão de poucos anos espalhou-se por todo o Império Romano a blasfêmia de que Jesus Cristo, longe de ser Deus, não passava de uma mera criatura.
Vendo os recém-legalizados cristãos divididos em um assunto tão importante, o imperador Constantino procurou reunir tanto o lado católico quanto o ariano para que eles chegassem a uma resolução. No ano de 325, então, em união com todos os bispos do mundo conhecido, ele convocou o Concílio Ecumênico de Niceia (atual Iznik, na Turquia). Quase dois mil bispos, padres e diáconos se juntaram para o concílio.
Em Niceia se reuniram grandes mentes católicas, como Santo Atanásio, à época diácono, Santo Hilário de Poitiers, São Nicolau e muitos outros. Embora Ário tivesse feito suas objeções, o concílio voltou-se contra ele, sustentando o ensinamento constante de Jesus Cristo tal como foi transmitido por seus Apóstolos.
Desde então, todos os católicos do Ocidente e do Oriente professam a divindade de Jesus Cristo tal como consta no Credo de Niceia: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas.”
Ário e os outros bispos que se recusaram a aceitar o Credo de Niceia foram excomungados pelo concílio e exilados na Ilíria pelo imperador.
Apenas três anos mais tarde, Eusébio de Nicomédia escreveu uma carta a Constantino em nome de Ário, e o heresiarca foi admitido de volta. Ao contrário do que ocorreu no Concílio de Niceia, desta vez o imperador se envolveu diretamente nos assuntos religiosos e fez da teologia de Ário sua opção pessoal. Ário passou os sete anos seguintes sob a proteção do imperador, tornando difícil a vida dos católicos. O heresiarca nutria um ódio especial para com Santo Atanásio e conspirou para que o santo fosse expulso de sua diocese cinco vezes.
Em 335, Constantino ordenou ao bispo de Constantinopla que desse a Ário a Santa Comunhão como sinal de reconciliação. O patriarca, ciente de que Ário não estava arrependido, rezou para que o heresiarca morresse antes de causar escândalo e cometer esse sacrilégio. Conta-se que, estando Ário a caminho da Missa (advertência de linguagem forte), apoderou-se dele um medo nascido da consciência de seus crimes; e com violência, naquele mesmo instante, soltou-se-lhe o ventre. Perguntou então se por ali havia latrinas e, como lhe dissessem que estavam atrás do fórum de Constantino, para lá se dirigiu. Logo em seguida começou a desfalecer. Conforme um autor antigo teve uma morte nauseante, horrível, (Sócrates Escolático, História Eclesiástica, c. 38, PG 67, 177-178). (4)
Apesar da vitória dos católicos no concílio, a heresia continuou a espalhar-se entre os bispos e os leigos. Anos depois, São Jerônimo lamentaria: “Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est — O mundo todo acordou em uma manhã, surpreendido e lamentando por descobrir-se ariano.” Tribos bárbaras como os godos, lombardos, vândalos e visigodos abraçaram a heresia e levaram-na até o século VI a muitas das terras do Império Romano fora da Itália. Lá pelo século VIII, entretanto, elas foram convertidas ao catolicismo.
Como se pode ver, a marca dessas grande crises que acontecem na vida da Igreja é a confusão. No século IV, mesmo depois que os bispos se reuniram para combater com força o erro da época, décadas foram necessárias para acabar com os efeitos mais imediatos do arianismo. Ao fim e ao cabo, porém, sempre permanece viva a promessa de Nosso Senhor no Evangelho: “Portae inferi non praevalebunt adversus eam — As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja” (Mt 16, 18).
Notas do site claravalcister:
- A fé em crise? O Cardeal Ratzinger se interroga/ Joseph Ratzinger/Vitporio Messori. São Paulo: EPU, 1985, p. 17.
- Op. cit. p. 07
- É um ponto que deve ser considerado. Ário era hereje “mas era conhecido por seu ascetismo e sua pregação”. Ou seja, tinha uma vida austera, certamente com jejuns e outros atos penitenciais. Ademais, falava muito bem e dizia coisas edificantes… Em suma, bom para entendermos que o mal não só é capaz de se misturar com o bem mas que o usa para mascarar seus objetivos e intenções.
- Claravalcister optou por omitir detalhes do texto original por nos parecerem desagradáveis.
Extraído de https://padrepauloricardo.org/blog/a-primeira-grande-crise-da-igreja