Durante a Quaresma, a Igreja nos convida a considerarmos em nossa oração a necessidade de converter-nos, de redirecionar nossos passos para o Senhor.
“Fazei, ó Deus, que o nosso coração corresponda a estas oferendas com as quais iniciamos nossa caminhada para a Páscoa”[1] : Desde o primeiro domingo da Quaresma, a liturgia traça decididamente o caráter dos 40 dias que começam na Quarta-Feira de Cinzas. A Quaresma é um compêndio de nossa vida, que é toda ela “um constante retorno à casa do nosso Pai”[2]. É um caminho para a Páscoa, para a morte e ressurreição do Senhor, que é o centro de gravidade da história do mundo, de cada mulher, de cada homem: um retorno ao Amor eterno.
No tempo da Quaresma, a Igreja nos desperta de novo à necessidade de renovar nosso coração e nossas obras, de modo que descubramos, cada vez mais, esta centralidade do mistério pascal: se trata de que nos ponhamos nas mãos de Deus para “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”[3] .
“O homem tem uma capacidade tão estranha para esquecer as coisas mais maravilhosas e acostumar-se ao mistério! Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial. Plenamente mergulhado no seu trabalho diário (…) o cristão tem que estar ao mesmo tempo totalmente mergulhado em Deus, porque é filho de Deus”[4]. Por isso é lógico que durante esses dias consideremos em nossa oração a necessidade da conversão, de redirecionar nossos passos para o Senhor e purificar o nosso coração fazendo próprios os sentimentos do salmista: “Cor mundum crea in me, Deus, et spiritum firmum innova in visceribus meis; Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova em mim um espírito resoluto”[5]. São palavras do salmo Miserere, que a Igreja nos propõe com frequência neste tempo litúrgico, e o qual São Josemaria rezou tanto.
Raízes da Quaresma:
- O caminho de Israel pelo deserto
A Quaresma possui raízes profundas em vários episódios chave da história da Salvação, que é também nossa história. Um deles é a travessia do povo eleito pelo deserto. Esses 40 anos foram um tempo de prova e de tentações para os israelitas. Javé os acompanhava continuamente e os fazia entender que só deviam se apoiar n’Ele: ia amolecendo seu duro coração de pedra[6]. Além disso, foi um tempo de graças constantes: mesmo que o povo sofresse, era Deus quem lhes consolava e lhes orientava com a palavra de Moisés, lhes alimentava com o Maná e as codornizes, lhes dava a água na Rocha de Meriba[7].
Quão próximas nos resultam as palavras, cheias de ternura, com as quais Deus faz os israelitas refletirem sobre o sentido de sua longa travessia! “Lembra-te de todo o caminho pelo qual o Senhor teu Deus te conduziu nesses quarenta anos, no deserto, para te humilhar e te pôr à prova, para conhecer tuas intenções e saber se observarias ou não os mandamentos. Ele te humilhou, fazendo-te passar fome e, depois, te alimentou com o maná que nem tu, nem teus pais conheciam, para te mostrar que não só de pão vive o ser humano, mas de tudo o que procede da boca do Senhor”[8]. Também hoje o Senhor nos dirige essas palavras: a nós que, no deserto de nossa vida, certamente experimentamos a fadiga e os problemas de cada dia, ainda que não faltem os cuidados paternais de Deus, às vezes, por meio da ajuda desinteressada de nossos familiares, de amigos ou, inclusive, de pessoas de boa vontade que permanecem anônimas. Com sua pedagogia inefável, o Senhor vai nos introduzindo em seu coração, que é a verdadeira terra prometida: “Praebe, fili mi, cor tuum mihi… Dá-me, filho, o teu coração, e teus olhos guardem os meus caminhos”[9].
Muitos dos episódios do Êxodo eram sombra de realidades futuras. De fato, nem todos os que participaram daquela primeira peregrinação chegaram a entrar na terra prometida[10]. Por isso, a Carta aos Hebreus, citando o salmo 94, sente dor pela rebeldia do povo e, ao mesmo tempo, celebra a chegada de um novo êxodo: “Os primeiros a receberem a boa-nova não entraram, por causa da desobediência”, e Deus “marca de novo um dia, um ‘hoje’, quando fala por meio de Davi, muito tempo depois: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações’”[11]. Esse hoje é o inaugurado por Jesus Cristo. Com sua Encarnação, sua vida e glorificação, o Senhor nos conduz pelo êxodo definitivo, no qual as promessas encontram perfeito cumprimento: coloca-nos no céu, consegue “um repouso para o povo de Deus. Pois aquele que entrou no repouso de Deus repousou de suas obras, como Deus repousou das suas”[12].
- O caminho de Cristo pelo deserto
O Evangelho do primeiro domingo da Quaresma nos apresenta a Jesus que, em solidariedade conosco, quis ser tentado ao final dos 40 dias que passou no deserto. Ver sua vitória sobre Satanás nos enche de esperança, e nos revela que, com Ele, poderemos vencer também nas batalhas da vida interior. Nossas tentações, então, já não nos inquietam, mas se convertem em ocasião para nos conhecermos melhor e para nos fiar mais de Deus. Descobrimos que o ideal de uma vida acomodada é uma imagem falsa da autêntica felicidade e percebemos, com São Josemaría, que “é preciso, sem dúvida, uma nova mudança, uma lealdade mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que, diminuindo o nosso egoísmo, Cristo cresça em nós, já que illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e eu diminua (Jo 3,30)”[13].
A experiência da nossa fragilidade pessoal não acaba no temor, mas na petição humilde que confirma a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor: “Afasta, Senhor, de mim o que o me afasta de ti”, podemos dizer, com palavras que São Josemaría repetiu com frequência[14]. Com Jesus, encontramos as forças para rejeitar decididamente a tentação, sem ceder ao diálogo: “Observai bem como Jesus responde. Ele não dialoga com Satanás, como tinha feito Eva no paraíso terrestre. Jesus (…) escolhe refugiar-se na Palavra de Deus e responde com a força desta Palavra. Recordemo-nos disto: no momento da tentação, das nossas tentações, nenhum diálogo com Satanás, mas defendidos sempre pela Palavra de Deus! E isto nos salvará”[15].
O relato da Transfiguração do Senhor, que é proclamado no segundo domingo da Quaresma, nos reafirma nesta convicção da certeza da vitória, apesar das nossas limitações. Também nós participaremos de sua glória, se soubermos nos unir à sua Cruz em nossa vida cotidiana. Para isso, temos de alimentar nossa fé, como aqueles personagens do Evangelho que a liturgia dos últimos domingos de Quaresma nos apresenta de três em três anos: a samaritana, que supera o pecado para reconhecer em Jesus o Messias que sacia, com a água viva do Espírito Santo, sua sede de amor[16]; o cego de nascimento, que vê a Cristo como luz do mundo, vencendo a ignorância, enquanto os que veem se tornam cegos[17]; Lázaro, cuja ressurreição nos recorda que Jesus veio para nos trazer uma vida nova[18]. Contemplando esses relatos como um personagem a mais, com a ajuda dos santos, encontraremos recursos para nossa oração pessoal, e se fortificará a presença de Deus mais intensa que procuraremos manter nestes dias.
Nosso caminho penitencial como filhos
A oração coleta do terceiro domingo da Quaresma apresenta o sentido penitencial deste tempo: “Ó Deus, fonte de toda a misericórdia e de toda bondade, vós nos indicastes o jejum, a esmola e a oração como remédio contra o pecado. Acolhei esta confissão da nossa fraqueza para que, humilhados pela consciência de nossas faltas, sejamos confortados pela vossa misericórdia”. Com a humildade de quem se reconhece pecador, pedimos com toda a Igreja a intervenção que esperamos da misericórdia de Deus Pai: um olhar amoroso sobre nossa vida, e seu perdão reparador.
A liturgia nos impulsiona a assumir nossa parte no processo de conversão, ao convidar-nos à prática das tradicionais obras penitenciais. Essas manifestam uma mudança de atitude em nossa relação com Deus (oração), com os outros (esmola) e conosco (jejum)[19]. É o “espírito de penitência”, do qual falava São Josemaría, e do qual propunha tantos exemplos práticos: “Penitência é o cumprimento exato do horário (…). És penitente quando te submetes amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares esgotado, sem vontade ou frio. Penitência é tratar sempre com a máxima caridade os outros (…), suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades da jornada (…), comer com agradecimento o que nos servem, sem importunar ninguém com caprichos”[20].
Sabemos ao mesmo tempo que as ações meramente externas não contam para nada sem a graça de Deus. Não é possível identificar-nos com Cristo sem a sua ajuda: “quia tibi sine te placere non possumus, pois sem o vosso auxílio, não vos podemos agradar”[21]. Apoiados n’Ele, procuramos realizar estas obras “no oculto”, onde só vê nosso Pai Deus[22], retificando com frequência a intenção, e buscando de modo mais claro a glória de Deus e a salvação de todos. O apóstolo João escreve: “quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê”[23]. São palavras que convidam a um exame profundo, porque não é possível separar ambos os aspectos da caridade. Se nos sabemos contemplados por Ele, o sentido de nossa filiação divina irá empapando a vida interior e o apostolado, com uma contrição mais confiada e filial, e com uma entrega sincera àqueles que nos rodeiam: familiares, colegas de trabalho, amigos.
O caminho penitencial por meio dos sacramentos
Em nossa luta diária contra a desordem do pecado, os sacramentos da Penitência e da Eucaristia são também momentos privilegiados. É lógico que a nossa penitência interior se aperfeiçoe graças à celebração do sacramento da Confissão. Depende muito das disposições do penitente, mesmo que o protagonismo seja de Deus, que nos leva à conversão. Por meio deste sacramento – verdadeira obra prima do Senhor[24] – percebemos seu bom fazer com a nossa liberdade caída. São Josemaría apresentava assim o papel que nos corresponde: “Aconselho a todos que tenham como devoção (…) fazer muitos atos de contrição. E uma manifestação externa, prática, dessa devoção é ter um carinho particular pelo Santo Sacramento da Penitência”[25], no qual “nos revestimos de Jesus Cristo e dos seus merecimentos”[26].
A Quaresma é um momento maravilhoso para fomentar este “carinho particular” pela Confissão, vivendo-a nós em primeiro lugar, e ajudando muitas pessoas a aproximar-se deste sacramento.
Depois da absolvição que o sacerdote dá em nome de Deus, o Ritual propõe, entre outras fórmulas possíveis, uma bela oração de despedida do penitente: “A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a intercessão da Virgem Maria e de todos os santos, tuas obras e a tua paciência, sirvam de remédio para os teus pecados, aumento de graça e prêmio da vida eterna. Vai em paz”[27]. É uma antiga oração na qual o sacerdote pede a Deus que estenda o fruto do sacramento à toda a vida do penitente, recordando de qual fonte emana sua eficácia: os méritos da Vítima inocente e de todos os Santos.
Como ocorreu com o filho mais novo da parábola, após o abraço de nosso Pai Deus somos admitidos no banquete[28]. Que alegria participar bem limpos na Eucaristia! “Ama muito o Senhor. Guarda na tua alma – e fomenta – esta urgência de querer-Lhe. Ama a Deus, precisamente agora, quando talvez bastantes dos que O têm em suas mãos não O amam, O maltratam e Lhe fazem pouco caso. Trata muito bem o Senhor, na Santa Missa e durante o dia todo!”[29].
Com a liturgia, a Igreja nos convida a percorrer com garbo o caminho da Quaresma. A celebração frequente dos sacramentos, a meditação assídua da Palavra de Deus e das obras penitenciais, sem que falte essa alegria – Laetare Ierusalem! – que o quarto domingo destaca especialmente[30], são práticas que afinam nossa alma, e nos preparam para participar com intensidade na Semana Santa, quando reviveremos os momentos cume da existência de Jesus na terra. “Temos de converter em vida nossa a vida e a morte de Cristo. Morrer pela mortificação e pela penitência, para que Cristo viva em nós pelo Amor. E seguir então os passos de Cristo, com ânsias de corredimir todas as almas”[31]. Contemplando ao Senhor que dá a vida por nós, bem purificados de nossos pecados, redescobriremos a alegria da salvação que Deus nos traz: “Redde mihi laetitiam salutaris tui, devolve-me a alegria de ser salvo”[32].
Alfonso Berlanga
[1] Missal Romano, I Domingo da Quaresma, oração sobre as oferendas.
[2] São Josemaria, É Cristo que Passa, n. 64.
[3] Missal Romano, I Domingo da Quaresma, oração coleta.
[4] É Cristo que Passa, n. 65
[5] Sl 50 (51), 12.
[6] Cfr. Dt 8, 2-5.
[7] Cfr. Ex 15, 22 – 17, 7.
[8] Dt 8, 2-3.
[9] Pr 23, 26
[10] Cfr. Nm 14, 20 ss.
[11] Hb 4, 6-7. Cfr. Sl 94 (95), 7-8.
[12] Hb 4, 9-10.
[13] É Cristo que Passa, n. 58.
[14] Notas de uma reunião familiar, 18-X-1972 (citado em A. Sastre Tempo de Caminhar, Rialp, Madrid 1989, p. 353).
[15] Francisco, Angelus, 9-III-2014.
[16] Jo 4, 5-42 (Lecionário, terceiro domingo da Quaresma, ciclo A).
[17] Jo 9, 1-41 (Ibidem, quarto domingo da Quaresma, ciclo A).
[18] Jo 11, 1-45 (Ibidem, quarto domingo da Quaresma, ciclo A).
[19] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 1434.
[20] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 138.
[21] Missal Romano, Sábado da IV Semana de Quaresma, Oração Coleta.
[22] Cfr. Mt 6, 6.
[23] 1 Jo 4, 20.
[24] Cfr. Catecismo da Igreja, n. 1116.
[25] Apontamentos da pregação, 26-IV-1970 (citado em J. López y E. Burkhart, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. III, p. 377).
[26] São Josemaria, Caminho, n. 310.
[27] Ritual da Penitência, n. 104.
[28] Cfr. Lc 15, 22-24.
[29] São Josemaria, Forja, n. 438.
[30] Missal Romano, IV Domingo da Quaresma, antífona de entrada (cfr. Is 66, 10).
[31] São Josemaria, Via Sacra, XIV estação.
[32] Sl 50 (51), 14.FONTE: https://opusdei.org/pt-br/article/quaresma-o-caminho-para-a-pascoa/