Reinaldo Azevedo
23/08/2013
Ainda o aborto, a novela “Amor à Vida”, o programa “Na Moral”, a nova opressão das mulheres e o verdadeiro desafio ao senso comum
Não acompanho a novela. Nesta quinta, assistia ao capítulo em razão de circunstâncias excepcionais. Mas sei o que vai lá, como quase todo mundo. Contam-me que um par de maridos quer ter um filho e que teria escolhido uma amiga para ser, sei lá como chamar, a “barriga solidária”. A inseminação artificial não deu certo. Então um deles resolve dar uma transadinha, coisa excepcional, com a moça. Trata-se, parece, de um “sacrifício” em benefício da causa. Aí ela engravida. O combinado, segundo entendi, é que a criança terá dois pais e uma mãe.
Entendo. A mesma novela que faz merchandising pró-aborto, com dados escandalosamente mentirosos, cria uma fábula moderna — sim, claro, virão conflitos pela frente, mas nada que gente descolada, resolvida e superior não consiga enfrentar nos capítulos finais — sobre uma família diferenciada… O mesmo folhetim que defende o direito ao aborto transforma em heróis os praticantes de uma ética de exceção. Isso e que é “amor à vida”, não é mesmo?
Claro, claro! O reacionário sou eu. Essa gente toda é progressista. Pena eu não saber disso quando escrevi o primeiro post. A coisa, então, é ainda mais grave do que eu pensava.
A peroração pró-aborto alegava uma suposta defesa dos direitos das mulheres. Afinal, estariam morrendo como moscas em razão de uma legislação atrasada, que seria imposta pela religião. Então tá. Que mulher é essa exibida na novela, que se apaixona por um gay, aceita transar com ele para fazer um filho, com o propósito de que essa criança seja criada a três? Até onde entendi, o pai biológico do bebê gosta mesmo é de homem. Se aceita o “sacrifício”, instrumentaliza a paixão da moça. Ela, por sua vez, fica feliz com as migalhas de afeto e ainda dará um filho a seu macho.
Assim se traduz o “respeito às mulheres”, supostamente expresso naquele discurso com estúpidas pretensões didáticas? Uma mulher que faz de seu útero uma espécie de mala, onde se põem e de onde se podem tirar fetos como quem guarda badulaques ou deles se livra está mesmo sendo respeitada? Gays são uma coisa. A cultura gay é outra, completamente distinta. E esta, não é preciso ser muito agudo para perceber, continua, eis o fato, a tratar as mulheres como seres de segunda grandeza — ainda que possa, às vezes, não se dar conta disso.
Também me pediram pra ver, e eu vi, o programa Na Moral, conduzido por Pedro Bial. Tratou, nesta quinta, das várias identidades sexuais e coisa e tal. Bial chamou de “desbravadora” um senhor casado, pai de três filhos, que passou, há poucos anos, a se vestir de mulher — e, segundo entendi, a ter uma vida sexual compatível com essa mudança. Cada um faça o que quiser de si. Mas que se tenha claro que a moral de exceção, se vista como regra, acabará por fazer da regra a exceção. Vale para o sexo e para qualquer outra coisa. O programa de Bial só vai ao ar porque existem regras, não porque existem exceções. A regra faz a natureza, que independe do humano, e os sistemas que dele são dependentes. Mas isso fica, se ficar, para outra hora. Meu ponto é outro.
Lá estava o marido que virou mulher sem deixar de ser marido. A seu lado, a sua mulher, que mulher continua. Já na casa dos 60 e poucos, que alternativa afetiva tinha aquela senhora? No fim das contas, ainda que de calça apertada e colorida e brincões na orelha, o seu marido-mulher continua a ser o macho que impõe a sua vontade. A ela resta aceitar ou ver sua família se desfazer. Dois dos três filhos estavam presentes. Chamados a dar seu depoimento, a moça, vê-se, sofre de modo eloquente. O rapaz não consegue ir além da tartamudez.
“Reinaldo está chocado porque essas coisas aparecem na TV.” Não mesmo! Mas me pergunto se a inteligência de Pedro Bial e sua competência para fazer TV — eu o considero uma dos melhores da sua geração, ainda que ele possa me considerar um dos piores da minha; pouco me importa — eliminam o aspecto para mim deletério e indelével de um programa com essas características: uma exposição de raridades — ou, se quiserem, de exemplaridades — de um novo circo, que é o do politicamente correto. Só que, consoante com os novos tempos, a exceção é exibida como aquilo que não é: uma alternativa. E só por isso o homem-mulher é chamado de “desbravadora”. Como ignorar que ele-ela exercia ali, afinal, a vontade que o macho impôs à fêmea? À tal “esposa”, coube apenas condescender. Afinal, a cultura gay é mesmo coisa de macho. Nesse circo, a mulher segue sendo coadjuvante. Nota à margem: até naqueles filmecos estarrecedores do Ministério da Educação, que Dilma acabou vetando, homens que decidem se vestir de mulher reivindicam o direito de usar o… banheiro feminino! Não se conhece o contrário: lésbicas querendo usar o banheiro masculino. Na cultura machista, ser mulher não é um grande negócio. Na cultura gay, ser mulher é um péssimo negócio.
Sem contraditório
Estou chamando a atenção para o fato de que o chamado “combate ao preconceito”, quando exercido sem contraditório — e contraditório mesmo, não simples arapuca para pegar um dos lados do debate —, acaba gerando, por óbvio, preconceitos novos.
Alguém perguntará: “O que é, nesse caso, o contraditório? O direito de ser preconceituoso?” É evidente que não! O contraditório, nestes dias, consiste em abordar os temas, da política à moral, com olhos não militantes, com olhos não corporativos, com olhos não interessados na demanda. São tantas as microcausas em trânsito que estamos perdendo alguns valores universais que fizeram as modernas democracias.
Quando “Amor à Vida” — que, reitero, dramatiza o esforço de um par de gays para ter um filho, usando o útero da amiga como uma mala — transforma o repúdio ao aborto numa caricatura grosseira, alguns séculos de história estão sendo jogados no lixo, entre a militância e a ignorância. Recomendo ao autor da novela, Walcyr Carrasco — e o faço de boa vontade, não e tom de agravo — que leia “The Rise of Christianity: a Sociologist Reconsiders History”, de Rodney Stark. Escrevi uma longa resenha na VEJA em 2007. As mulheres — e as mulheres pobres — foram as primeiras entusiastas do cristianismo, Walcyr, justamente porque aquela “seita” se opunha ao aborto, e isso, para elas, era, com frequência, a diferença entre a vida e a morte. As tragédias, como as pestes, fortaleceram a religião porque a solidariedade entre os crentes — precursores das ONGs realmente não governamentais — salvou vidas.
Aquele repto anticristão na novela ignora o fato de que, por exemplo, a Igreja Católica, somados os leitos, é o maior hospital do mundo; somados os desembolsos das instituições católicas, é a entidade que mais investe em pesquisa no mundo; é a maior escola do mundo; é a maior entidade de assistência social do mundo.
“O que você quer, Reinaldo? Que uma novela das 21h fique repetindo dados estatísticos?” Não! Contento-me que a instituição que mais salva vidas, mundo afora, não seja tratada como homicida. Por ano, mais de 100 mil cristãos são assassinados no mundo por uma única razão: porque são cristãos.
Na moral, Pedro Bial! Atacar os valores cristãos é muito fácil. Na moral, Pedro Bial, excepcional mesmo, nestes dias, seria exibir suas virtudes. Aí, sim, estaríamos diante de algum desafio ao senso comum. Ao menos ao senso comum militante.
FONTE: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/ (23-08-2013)