BAJULAÇÃO: A CORDIALIDADE INSINCERA

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Vicente do Prado Tolezano

A bajulação – também chamada por adulação ou lisonja – é esquema de manipulação afetiva muito antigo, muito eficaz, que goza de longevidade garantida tanto quanto exista a humanidade, pois se funda em duas humaníssimas fraquezas: baixa autoestima e vaidade (ou orgulho ou arrogância).

Platão (428–348 a.C.) dedicou atenção ao tema em várias passagens de seus diálogos, principalmente no “Górgias”. O gigante grego assentou, com todo acerto, que o bajulador é atrativo, mas é animal terribilíssimo e de práticas altamente danosas.

 Plutarco (46–120 d.C.), filósofo romano e herdeiro explícito da tradição platônica, lavrou um tratado específico do tema, o opúsculo “Como distinguir o bajulador do amigo” – a nossa principal fonte para este artigo. 

A bajulação é farinha do mesmo saco da hipocrisia, sedução e outras falsidades. A dificuldade em extirpá-la é que além de se fundar, como já dito, nas frequentíssimas baixa autoestima e vaidade, ela veste as roupas daquilo que é muito buscado, por muito nobre à vida, que é a amizade. O bajulador sempre se dissimula como se amigo fosse, e é agradável, cordial e simpático na aparência.

As seguintes condutas, quando praticadas com insinceridade, cinismo ou hipocrisia e (ou) com fins utilitaristas ou danosas, são próprias da bajulação:

1. Elogiar, exaltar, qualificar alguém, validar, aplaudir ou manifestar admiração, louvor, etc. Coloquialmente, chamam-se de “massagens no ego”;

2. Declarar-se inferior ao bajulado, prestando-lhe reverências ou prostrações que podem chegar ao servilismo; oferta de mimos, favores, mesuras; declarar concordância com as mesmas opiniões ou interesses do bajulado sobre vários assuntos e mudar opinião sempre que o bajulado também mudar. Coloquialmente, chamam-se “puxações de saco”.

Por uma simples bajulação, alguém pode “dar até a alma”, sofrer delírios de grandeza, virar galo-de-briga, jactar-se, inflamar-se de orgulho/vaidade, etc dentre tantas insensatezes e arruinamentos típicos dos iludidos.

 Frise-se que elogiar e ser solícito são, objetivamente, ações próprias de amizade. Contudo, a amizade demanda, de forma inegociável, o elemento subjetivo inexistente na bajulação: a franqueza. Ou seja, o amigo efetivo elogia o elogiável, censura ou adverte até duramente o censurável ou condenável do amigo e por critérios objetivos (sinceros, ao menos), e não para “meramente agradar, validar ou aprovar”.

 Sem qualquer exagero, o amigo é o maior “guardião da lucidez” de alguém sobre si próprio, ou simplesmente não é amigo. Plutarco menciona o amigo como o nosso “redutor dos excessos do orgulho”. Exatamente por isso, amizade é forma de amor e não de poder, como sói ser a bajulação.

O bajulador – que de amigo só tem as vestes – rouba do bajulado algo de proveito essencial da interação humana. Diz Plutarco que o bajulador “(…) está sempre em oposição ao conhece-te a ti mesmo, introduzindo o engano em cada um com relação a si próprio e a ignorância de si mesmo”.

São tão predatórios os bajuladores que os adversários, rivais ou até mesmo inimigos, se declarados, têm mais serventia no que respeita às correções de rumo e quebra das ilusões.

O filósofo romano esclarece que a assunção das inimizades é meio que instiga os homens a “permanecerem sóbrios em sua vida e se manterem afastados da fraqueza de caráter” e que “(…) frequentemente, uma crítica lançada pela cólera ou pela inimizade cura um vício da alma ou porque era ignorado ou era negligenciado”. 

Alcançar julgamentos objetivos, justos e razoáveis de si, extirpados de orgulhos, egos e ilusões, é fruto colhido na travessia ao menos razoável da maturação; e “críticas”, incluídas as antipáticas, vindas da alteridade benevolente são indispensáveis.

 Importante destacar que o bajulado, muitas vezes, não é mera vítima passiva do achaque casual dos bajuladores. Ele, por ingenuidade difusa (associada à baixa autoestima) ou mesmo perversão (associado à vaidade), pode ser um pidão ativo da lisonja e manifestar hostilidade a críticas, mesmo as razoáveis e benevolentes. 

Nessas situações acima, passa-se mesmo um impulso de ojeriza contra a franqueza, num esquema de paralelismo entre o exterior e o interior.

Plutarco assentou também que “cada um de nós é o maior bajulador de si”. Disso, segue-se óbvio de que quanto mais alguém se auto bajula ou manipula, mais ele tende a ser bajulado ou manipulado externamente. 

Aquele que se bajula é, sem exageros quaisquer, pessoa de caráter íntimo masoquista à busca de um (ou mais) bajulador(es) externo(s), que fará (ão) papel de seu (s) sádico (s).

 Os malevolentes, sádicos, sempre entendem a fraqueza alheia – e o jogo interno que o bajulado faz consigo –, seja por baixa autoestima ou por vaidade (às vezes difíceis de ser discernidas uma da outra ou mesmo amalgamadas) e é aí que está a chave do poder. O bajulador anestesia essa fraqueza, sem, claro, que o bajulado tenha melhorado qualquer dos elogios, aplausos, conselhos, etc. Aliás, vai mesmo piorar, desde ser parasitado até esfolado.

Hans Christian Andersen exibiu, com fina mordacidade, pelo singelo clássico “As roupas novas do imperador” duas feiúras:

1. a imensa eficácia ilusória da bajulação de uns picaretas sobre um rei vaidoso, que se permitiu ir até o cúmulo do ridículo;

2. a solidariedade das pessoas pendente mais para os bajuladores que para o bajulado! Afinal de contas, tão-somente o menininho teve a franqueza de não aplaudir e dizer a nudez do rei como ele a via. Toda a turba jogava o teatro de “puxar o saco do rei”.

 São poucas as pessoas “não bajuláveis” e só essas são pessoas propriamente livres.

As turbas estão tanto sendo achacadas por bajulações múltiplas, até grotescas e institucionalizadas (a exemplo, o “politicamente correto”), quanto bradando, ainda que inconscientemente “bajula-me sem parar, por amor!”.

 Menor ainda é o número de pessoas que não bajulam em absoluto, pois, no mínimo, se tornam personae non gratae e hostilizadas em quaisquer domínios sociais, incluídos os de trabalho, as escolas e mesmo no âmbito das famílias, tornando a vida prática quase impossível.

O mundo tem a mania incorrigível não perdoar os francos, pois, mesmo sob vestes de amigo, o mundo só dá e só quer mesmo é receber lisonjas.

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