O ecumenismo católico: do conflito ao diálogo
Edison Minami
No primeiro artigo sobre o tema tratei das origens históricas do ecumenismo a partir do protestantismo.
Hoje quero tratar dos inícios do ecumenismo católico, assunto dos mais candentes e interessantes para todos à luz dos acontecimentos recentes envolvendo a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 e o intenso debate que tem ocorrido nos ambientes eclesiais.
O ecumenismo não nasceu com o formato com que o conhecemos atualmente. Refiro-me aqui às belas imagens que o papa Francisco usou em sua visita ao Iraque; em plena pandemia do coronavírus munido de coragem e zelo pastoral. Para o papado romano chegar a abraçar os muçulmanos como o papa fez dias atrás, um longo caminho foi percorrido. Vamos a ele com coragem e paciência na leitura!
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O Concílio de Trento (1545-1563) marcou uma nova era dentro da Igreja, a ponto de todo o período posterior ser denominado de Tridentino, em uma clara referência a este concílio que estabeleceu com precisão o papel da Igreja no nascente mundo moderno, principalmente com relação às Igrejas nascidas da Reforma Protestante. Mais tarde, a partir dos fins do século XVIII a Igreja sofreu uma nova reformulação, desta vez para combater o espírito iluminista e revolucionário; luta especialmente travada por Pio IX (1846-1878). Como principal medida desse pontificado, os historiadores destacam a celebração do Concílio Vaticano I (1869-1870) e a aprovação do documento Pastor Aeternus, que definiu o dogma da Infalibilidade Pontifícia. Um teólogo brasileiro assim citou o trecho principal do documento:
“Pondera o Concílio [Vaticano I] que, para conservar o episcopado uno e indiviso e manter a coesão e união íntima dos sacerdotes com a multidão dos crentes na unidade da mesma fé e comunhão, o Eterno Pastor [Pastor aeternus], antepondo são Pedro aos demais Apóstolos, pôs nele o princípio perpétuo e o fundamento visível desta unidade”. (1).
É preciso lembrar uma iniciativa que ocorreu durante a preparação do Concílio. Foi o convite que Pio IX estendeu aos integrantes das demais confissões cristãs.
“Pio IX queria que o seu concílio fosse plenamente ecumênico. Dirigiu um convite oficial aos bispos cismáticos de rito oriental, para que comparecessem e assistissem “tal como os seus predecessores tinham vindo ao segundo Concílio de Lyon e ao Concílio de Florença”; e até aos protestantes de todas as obediências enviou uma carta paternal, propondo-lhes explicitamente que retomassem contacto com Roma por essa ocasião. A verdade é que esses apelos não foram ouvidos. Os bispos orientais, com apenas quatro exceções, rejeitaram o convite com desdém. Quanto aos protestantes, a atitude foi mais matizada, mas, no fim das contas, também ela negativa” (2).
Para os cristãos de outras denominações, o simples fato de ser um evento que dependia do pedido do Papa para ocorrer, por si só era considerado motivo para se declinar o convite. E desse modo somente noventa anos depois, com o Vaticano II, veríamos não católicos assistindo a cerimônias oficiais da Igreja Católica dentro do Vaticano.
Uma consequência desses séculos todos de embates religiosos foi o surgimento do estereótipo de que a Igreja Católica procuraria sempre manter uma postura de afastamento com os não católicos, o que não é exatamente uma verdade, já que diversos pontífices alimentaram linhas de pensamento favoráveis a uma postura mais aberta ao mundo moderno, e consequentemente ao ecumenismo, como passaremos a tratar a partir de agora.
Leão XIII publicou a encíclica Satis Cognitum (1896). Ciente da descontinuidade causada pelo encerramento do Concílio Vaticano I (3), o documento tinha como objetivo primordial desenvolver pontos de discussão que não haviam sido suficientemente esclarecidos, em particular a questão do papel dos bispos dentro da Igreja Católica. Além disso, ao procurar precisar o papel dos fiéis dentro da Igreja, lembrava que a Igreja Católica era a plena detentora da mensagem transmitida por Cristo, e que era seu dever que os cristãos de outras confissões voltassem ao redil de Cristo:
“Sabeis bastante que uma parte considerável dos nossos pensamentos e preocupações é dirigida para este fito: esforçar-nos para reconduzir os transviados ao redil governado pelo Supremo Pastor das almas, Jesus Cristo. (Leão XIII. Satis Cognitum, 1. Petrópolis: Vozes, 1951).” (4)
Apesar do tom pouco conciliador, este documento foi importante por identificar claramente a Igreja Católica frente às demais confissões cristãs. A importância vinha do fato de que qualquer conversação ecumênica deveria ser precedida com um esforço de se conhecer sua própria identidade. Nesse sentido, a encíclica Satis Cognitum prestou um inusitado e importante serviço à causa ecumênica. Mesmo assim havia pontos no documento em que Leão XIII já apontava para uma linha mais aberta e tolerante:
“[…] está na missão de Cristo redimir da morte e salvar “o que perecera”, isto é, não somente algumas nações ou algumas cidades, senão a universalidade do gênero humano todo, sem distinção alguma nem no espaço nem no tempo’ (5).
Leão XIII, coerente com a doutrina católica, defendia a conversão de outros crentes cristãos ao catolicismo.
Anos depois Pio XI publicou a encíclica Mortalium Animos (1928) que permaneceu como um marco nas relações entre a Igreja Católica anterior ao Vaticano II e as Confissões Cristãs. [Vale lembrar que nesse momento o movimento ecumênico contava apenas dezoito anos, tendo sido iniciado formalmente em 1910]. Pio XI defendia claramente que:
“Há apenas um modo pelo qual a unidade dos cristãos pode ser promovida: trabalhar pelo retorno à única igreja verdadeira de Cristo daqueles que dela se separaram, pois foi desta única igreja verdadeira que eles se separaram no passado (6)
Para Pio XI as concepções teológicas e propostas de unidade do Movimento Ecumênico eram incompatíveis com a ortodoxia católica, daí a condenação sistemática do ecumenismo. Para o papa os “pan-cristãos” falavam de um espírito que não era o Espírito Santo, mas um espírito de morte [Mortalium animos] que levaria à descaracterização da mensagem cristã, justificando assim o nome do documento.
Era nesse momento de ebulição dentro dos ambientes ecumênicos que Pio XII produziu dois documentos que faziam referência ao ecumenismo. A encíclica Mystici Corporis Christi (1943) sobre o corpo místico de Cristo reafirmou a doutrina da Unidade da Igreja:
“Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do Corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas” (7).
Pela via negativa, podemos dizer que aqueles que não propositalmente abandonaram a Igreja Católica não podem ser automaticamente condenados como podemos deduzir do trecho abaixo:
Mas se desejamos que sem interrupção subam até Deus as orações de todo o Corpo Místico implorando que os errantes entrem quanto antes no único redil de Jesus Cristo, declaramos contudo ser absolutamente necessário que eles o façam espontaneamente e livremente, pois que ninguém crê, senão por vontade. […] Por conseguinte se alguns que não creem são realmente forçados a entrar nos templos, a aproximar-se do altar e a receber os sacramentos, não se fazem verdadeiros cristãos. (8)
Já a Humani Generis (1950), produzida para combater o Modernismo, não tratava diretamente sobre ecumenismo mas havia trechos em que colocava sob suspeita o movimento ecumênico:
[…] não julguem, levados por um falso irenismo, que se possa obter o suspirado retorno dos dissidentes e dos errantes ao seio da Igreja se não se lhes ensina, sinceramente, sem nenhuma diminuição, toda a verdade professada pela Igreja.(9).
Pio XII alertava sobre os perigos do ecumenismo fácil que prometia restaurar em poucas décadas a separação de séculos.
Podemos dizer que a Igreja Católica alternava momentos de maior e menor abertura para o ecumenismo, indo por terra a ideia de que a Igreja Católica estava completamente fechada para o diálogo até a celebração do Concílio Vaticano II.
Em resumo, podemos dizer que:
- Até os anos cinquenta do século XX o papado romano via com suspeição o movimento ecumênico, embora algumas ideias essenciais para o início dos diálogos ecumênicos já tinham sido plantadas, a saber:
1.1. A doutrina católica deve ser apresentada com clareza, sem exageros nem omissões;
1.2. Os atuais fiéis das Igrejas protestantes estão eximidos da culpa pela separação, afirmação importante que permite a aproximação e o diálogo.
De qualquer modo, a mensagem geral que ficava era a de que o ecumenismo deveria levar a volta ao catolicismo romano e a obediência ao papado. Essa atitude era explicada pelo espírito de animosidade contra o catolicismo e a concepção da teologia do ecumenismo, naquele momento incompatível com a doutrina católica.
Mas como veremos nas postagens seguintes essa recusa ao diálogo ecumênico iria mudar para uma abertura sem precedentes.
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Notas:
- KLOPPENBURG, Frei Boaventura. OFM. Minha Igreja. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 122.)
- DANIEL ROPS. A Igrejas das revoluções I: diante de novos destinos. Trad. Henrique Ruas. São Paulo: Quadrante, 2003, p. 459.).
- [encerrado devido a eclosão da Guerra Franco-Prussiana (1870) e a saída dos bispos franceses do concílio juntamente com as tropas francesas que ocupavam os Estados da Igreja e protegiam o papado da invasão das tropas do Piemonte-Sardenha e de Giuseppe Garibaldi]
- (Leão XIII. Satis Cognitum, 1. Petrópolis: Vozes, 1951).
- (Leão XIII. Satis Cognitum, 8. Petrópolis: Vozes, 1951).
- (Pio XI. ‘Mortalium animos’, in: OUTLER, Albert C. Para que o mundo creia. São Paulo: Imprensa Metodista, 1973, p. 122).
- (Pio XII. Mystici Corporis Christi. 2ª Edição. Petrópolis: Vozes, 1950, N°20).
- (Pio XII. Mystici Corporis Christi. 2ª Edição. Petrópolis: Vozes, 1950, N°104).
- Pio XII. Humani Generis, 42).
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Fonte: blog do prof. Edison Minami
– Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). https://teologiadahistoriabrasil.blogspot.com/2021/03/ecumenismo-origens-parte-02-o.html?spref=fb&fbclid=IwAR02h_uckTPNRO45H90I9KnyaFsDSNm63ZlHFOu5JG-eB7ee3jiFffF_6ao