“Não há igreja que possa dizer que é de Cristo se todos os seus membros não creem nas mesmas verdades, já que essas são verdades de Deus, eternamente imutáveis, as mesmas para todos os povos” (Leo Trese) (1).
Introdução:
A teologia ensina que no Credo temos as quatro notas pelas quais reconhecemos a Igreja de Cristo: ela é Una, Santa, Católica e Apostólica. Cada uma delas tem uma beleza imensa, divina.
Entretanto… Muitos não as entendem. Não compreendem como a Igreja é santa havendo tantos pecados entre os católicos.
E a unidade?
A unidade implica em três dimensões: a unidade do Credo, a unidade de autoridade, a unidade de culto.
Se assim é entendida a unidade é possível falarmos em correntes dentro da Igreja?
Por paradoxal que pareça, sim. É o que nos assegura um grande teólogo: Fernando Ocáriz:
“(…) é preciso esclarecer que a teologia contemporânea não é uma realidade homogênea. Nela há (…) diferentes correntes, e entre as quais encontramos em alguns casos uma clara discordância. Dessa forma, é fato sabido que há ambientes teológicos, entre si muito diferentes, que são críticos ou abertamente hostis aos ensinamentos concretos do magistério da Igreja (…) (2).
Correntes e pluralismo
Ressaltemos que pode haver na Igreja correntes teológicas diferentes, mas ortodoxas. Assim podemos ter agostinianos e tomistas, probabilistas e equiprobabilistas, etc, etc. A Igreja reconhece as dificuldades e complexidades do mundo teológico e, devido a isso, permite a seus membros, um legítimo e saudável pluralismo.
Por outro lado, devido a falhas humanas e outros fatores, incluindo a maldade humana, toda a história da Igreja apresenta correntes que se afastaram da verdade revelada e tiveram que ser combatidas pelos que eram fiéis aos ensinamentos de Cristo. Muitas vezes foram lutas longas, árduas. Especialmente porque o erro procura estar camuflado com a verdade.
Dito isso passemos a analisar as três principais correntes da Igreja hoje: a tradicionalista, a conservadora e a progressista. Dentro do possível vamos procurar explicá-las através de seus próprios textos e documentos.
Corrente 1. Os tradicionalistas
De forma simplificada podemos dizer que são considerados tradicionalistas todas as instituições, movimentos e grupos que fazem críticas ou oposição a ensinamentos do Concílio Vaticano II e ao novo Ordus Missae promulgado pelo Papa Paulo VI em 1969.
Suas críticas básicas são as seguintes:
- O Concílio teria ensinamentos opostos ao que antes fora condenado pelo Magistério da Igreja.
Liberdade religiosa e estado laico
O documento criticado é a Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, de 7 de dezembro de 1965. Tal documento, dizem, estaria mais conforme com o que era defendido pelos liberais no século XIX e cujos erros haviam sido condenados pela Igreja.
Consoante uma nova abordagem da liberdade religiosa o Concílio passou a defender a separação entre a Igreja e o Estado. Ora, a doutrina anterior defendia a união entre os dois poderes. Onde houvesse possibilidade ensinava-se que era bom que o Catolicismo fosse a religião oficial. O Estado laico, no sentido da Revolução Francesa, era condenado. Razão? O estado laico iluminista é um Estado que se coloca acima da Igreja, que nega sua atuação pública e que afirma que o poder dela se limita aos indivíduos e à sacristia, não à sociedade. Mais grave ainda: é um Estado que não levaria em conta nem a lei divino-positiva nem a lei natural.
O documento também é criticado por conduzir à ideia de que todas as religiões têm igual valor. Não haveria uma Igreja que se poderia afirmar verdadeira.
Liberdade religiosa e ecumenismo
Outro documento conciliar criticado é o Decreto Unitatis Redintegratio sobre o Ecumenismo, de 21 de novembro de 1964.
Dentro da Igreja considerava-se que o objetivo do movimento ecumênico seria atrair todos os que saíram – no caso ortodoxos e protestantes – a retornar à casa paterna. Contudo, afirmam os tradicionalistas, certos trechos dos documentos conciliares favoreceram um falso ecumenismo no qual, praticamente todas as correntes cristãs são equiparadas e em cujas igrejas todos se podem salvar. As reações ficaram ainda mais fortes quando o ecumenismo passou a contemplar religiões não cristãs.
Outra abertura para um ecumenismo que contestam está no documento Lumen Gentium que no ponto 8, diz: “Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele (13), embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica”.
Ou seja, a Igreja de Cristo, dizem, não é claramente identificada com a Igreja Católica como no ensinamento anterior. A nova terminologia teria sido introduzida para facilitar a união entre as várias denominações cristãs. Todas, de algum modo, fariam parte da Igreja de Cristo.
O espírito do Concílio
Tradicionalistas – mas não somente eles – são também críticos do chamado espírito do Concílio. Tal espírito teria dado abertura a todos os erros doutrinários e práticas pastorais negativas surgidos na Igreja nos últimos 60 anos.
- A nova missa
Os tradicionalistas consideram que a crise provocada pelo Concílio teria ficado mais grave com a mudança litúrgica promulgada por Paulo VI e, mais ainda, quando o Pontífice proibiu a continuação da chamada missa de S. Pio V. O dilema foi enorme. A razão é que consideram o Novus Ordus como heretizante, pois seu texto ficaria mais próximo do conceito protestante sobre a Ceia do Senhor. Afirmam que nele não estava claro que a missa era a renovação ou a atualização do sacrifício de Cristo na cruz. Rezá-la implicaria em pecado. E aí entrou uma questão de consciência.
Com efeito, caso decidissem continuar celebrando no rito antigo seriam culpados do pecado de desobediência, pois o mesmo fora banido pelo papa. Qual foi a solução encontrada? De um lado apegaram-se à declaração de S. Pio V no sentido que sua missa tinha um caráter perpétuo, e assim sua revogação seria nula. De outro, como se pode ver em documento da Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, fundada pelo arcebispo Marcel Lefebvre em 1970, afirmaram que tinham a obrigação de seguir uma obediência maior: ao Magistério de sempre. E ainda completaram: o papa também não só deve estar submetido a ele mas tem – por missão – o dever de preservar o Depósito da Fé.
Importante salientar que em vista do choque com o Vaticano, e após receber várias censuras, D. Lefebvre e D. Mayer – afirmando o estado de necessidade da Igreja, decidiram sagrar quatro bispos, mesmo sem autorização pontifícia. o que foi feito em junho de 1988. Ao fazer isso, conforme o direito canônico, incorriam na chamada excomunhão latae sententiae (aplicada automaticamente). Eles também a consideraram nula.
Acrescentemos que a proibição da missa tridentina por Paulo VI, tinha causado perplexidade até mesmo a Ratzinger, ainda padre, como podemos ver em uma de suas biografias (3). Bem mais tarde, em 2009, já então Papa, Bento XVI levantou a excomunhão que havia contra os bispos tradicionalistas da Fraternidade S. Pio X e concedeu-lhes o direito de continuar celebrando no rito antigo. A razão, disse ele, foi atrair para a Igreja centenas de milhares de pessoas, religiosos e leigos, que poderiam fazer muito bem à Igreja. Devido a isso, ele conta, foi furiosamente criticado por forças dentro da Igreja. (4)
Apesar de tudo ainda há diálogo entre a Fraternidade e o Vaticano. Um diálogo intermitente.
- Tradicionalismo e correntes teológicas modernas.
Os tradicionalistas afirmam que os erros do Vaticano II e os que surgiram posteriormente são devidos à aceitação e propagação, por parte de setores da hierarquia, das doutrinas modernistas condenadas por S. Pio X. Foi esse Modernismo que deu origem ao chamado progressismo católico com suas várias subcorrentes. (Teologia da libertação, teologia da práxis, teologia do pluralismo religioso, etc).
- Tradicionalistas em união com o Vaticano
São aqueles que estão em situação regular dentro da Igreja e que são autorizados a celebrar a missa no antigo rito de S. Pio V. Aceitaram a abertura dos Papas. Não quer dizer que não mantenham reservas ou até objeções a pontos do Concílio. Parece-me que também haja quem tenha aderido à hermenêutica da continuidade e tenha passado a considerar o Vaticano II aceitável.
Não julgo necessário para o presente artigo mostrar as diferenças entre grupos tradicionalistas.
- Os tradicionalistas e os Papas.
Todos têm críticas, abertas ou veladas, aos papas João XXIII e Paulo VI. Os mais benevolentes consideram que foram ingênuos diante do assalto modernista e demasiado otimistas em relação ao diálogo com o mundo moderno. Outros consideram que foi graças a eles que pontos polêmicos e ensinamentos ambíguos foram aprovados pelo Concílio. Em suma, favoreceram erros progressistas. Ademais, consideram que Paulo VI estimulou muitos bispos voltados a uma visão demasiado humana da fé incluindo os favoráveis à teologia da libertação.
Por ocasião da morte de Paulo VI houve tradicionalistas que temiam a eleição do cardeal Stefan Wyszynski tido como um prelado que iria procurar uma coexistência maior com os países comunistas. Não aconteceu. A surpresa foi a eleição de Woytila, outro cardeal polonês. Inicialmente houve, da parte tradicionalista mais ligada à política, uma certa reserva porque o consideravam relativamente progressista. Gradualmente tal desconfiança foi se arrefecendo, especialmente com a publicação de documentos muito importantes como as encíclicas Centesimus Annus, 1991; Veritatis Splendor, de 1993 e Fides et Ratio, de 1998. O otimismo cresceu nas fileiras tradicionalistas ainda mais com o pontificado de Bento XVI. Houve até quem julgasse que Bento XVI poderia ser o Papa da visão de S. João Bosco. Nela o pontífice dirigia a nau capitania (a Igreja), em meio a uma batalha naval, de encontro às duas colunas das quais havia se afastado: a da Virgem Maria e a do Ssmo Sacramento.
Tradicionalismo no Brasil
Em nosso país, por muito tempo, o movimento tradicionalista mais conhecido e atuante foi o da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade), fundada pelo professor Plínio Corrêa de Oliveira, outrora presidente da Ação Católica no Brasil. Um grupo da entidade viajou a Roma para tentar influenciar no Concílio contando com a colaboração de D. Antonio de Castro Mayer, bispo de Campos, RJ e D. Geraldo de Proença Sigaud, arcebispo de Diamantina, MG. Destacou-se pelo seu papel na luta anticomunista e em defesa da família bem como por críticas à cúpula da CNBB e aos principais bispos progressistas do Brasil.
A TFP não apoiou a sagração dos 4 bispos tradicionalistas feitas por D. Lefevbre e D. Mayer.
Já no terreno do combate ao comunismo publicou um manifesto em abril de 1974 opondo-se à diplomacia Vaticana face aos regimes comunistas. Seu título: “A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas. Para a TFP: Omitir-se? Ou resistir?
A resposta foi a resistência (5).
Divisão no tradicionalismo brasileiro
No início dos anos 80 surgiu dentro da TFP uma divisão provocada pelo prof. Orlando Fedeli que criou, anos mais tarde, a Associação Cultural Montfort. A maior parte manteve-se, entretanto, fiel ao fundador. Mais tarde, houve uma divisão mais profunda. De um lado ficaram os membros mais velhos da entidade; de outro, João Scognamiglio Clá Dias (atualmente monsenhor) que arrastou a maioria dos antigos militantes e criou, depois, Os Arautos do Evangelho. Após batalha judicial os antigos diretores perderam o direito de usar o nome da TFP. Criaram o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira e mudaram a cor do estandarte e da capa que usavam em manifestações públicas.
Apesar da cisão, ambos os lados continuam se dizendo fiéis aos ideais contrarrevolucionários de Plínio Corrêa de Oliveira.
Separados da TFP, os Arautos passaram a desenvolver um apostolado estritamente religioso. Conseguiram aprovação canônica e hoje são uma “Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício”. (2001) (6).
- Os sedevacantistas
Sedevacantistas, como fica claro pelo nome, são aqueles que consideram que a Igreja está sem Papa.
Tal fato teria ocorrido porque, desde o Concílio, os papas teriam se afastado da fé e promovido a heresia. Ao agir assim teriam perdido automaticamente o pontificado.
Mas, lembremos, Cristo disse que sua Igreja permaneceria até o fim dos tempos.
Eles respondem dizendo que na situação atual a Igreja é mantida pelo Espírito Santo. O Papa que aparece diante de nós – por exemplo o Papa Francisco – estaria lá só materialmente. Não mais estaria como representante de Cristo.
Importante dizer que os sedevacantistas são a minoria da minoria dentro da Igreja. São criticados por muitos tradicionalistas.
Terminamos colocando um texto oficial da Fraternidade Sacerdotal São Pio X que mostra o que pensam sobre a situação da Igreja.
Declaração de 1974
“Nós aderimos de todo o coração e com toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a manutenção dessa fé, à Roma eterna, mestra de sabedoria e de verdade.
Pelo contrário, negamo-nos e sempre nos temos negado a seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II, e depois do Concílio em todas as reformas que dele surgiram.
Todas estas reformas, com efeito, contribuíram, e continuam contribuindo, para a demolição da Igreja, a ruína do sacerdócio, a destruição do Sacrifício e dos Sacramentos, a desaparição da vida religiosa, e a implantação de um ensino naturalista e teilhardiano nas universidades, nos seminários e na catequese, um ensino surgido do liberalismo e do protestantismo, condenados múltiplas vezes pelo magistério solene da Igreja”. + Marcel Lefebvre
21 de novembro
de 1974
https://www.fsspx.com.br/declaracao-de-1974/
Notas:
- TRESE, Leo. A Fé Explicada. Trad. de Isabel Perez. São Paulo, Quadrante, 1981, p. 124
- OCÁRIZ, Fernando. Sobre Deus, a Igreja e o Mundo. 1ª edição, entrevista a Jorge Serrano, São Paulo, Quadrante, 2013, p. 18).
- SEEWALD, Peter. Bento XVI, O Último Testamento, Trad. Peté Rissati. 1ªed. São Paulo, Planeta, 2017, p. 166-7.
- Como um dos bispos havia feito declarações brutalmente infelizes sobre o holocausto a reação de alguns contra o Papa – por haver levantado a excomunhão – foi muito dura. No documento ele diz:”Fiquei triste pelo fato de inclusive católicos, que no fundo poderiam saber melhor como tudo se desenrola, se sentirem no dever de atacar-me e com uma virulência de lança em riste”.
“Veja aqui a íntegra do documento que o Papa Bento XVI enviou aos bispos sobre o levantamento da excomunhão aos 4 bispos sagrados por Mons. Lefebvre e D. Mayer em 1988. http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/letters/2009/documents/hf_ben-xvi_let_20090310_remissione-scomunica.htmlhttps://www.pliniocorreadeoliveira.info/MAN%20-%201974-04-08_Resistencia.htm#.VQVXruH2PIU - https://www.pliniocorreadeoliveira.info/MAN%20-%201974-04-08_Resistencia.htm#.VQVXruH2PIU
6. Uma curiosidade: o professor Orlando Fedeli foi aluno de Dr. Plínio Correa de Oliveira na Universidade e Monsenhor João Clá foi aluno do professor Fedeli no ensino médio.
A íntegra da entrevista com o prof. Rodrigo Coppe Caldeira encontra-se neste link: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/45840-tradicionalismo-e-conservadorismo-catolicos-as-ideologias-em-jogo-entrevista-especial-com-rodrigo-coppe-caldeira
Tradicionalismo e Conservadorismo católicos são temas de estudos também nas grandes universidades e podemos encontrá-los em sites de importantes revistas católicas. Na revista da Unisinos on line temos um exemplo. Nela, o professor e pesquisador Rodrigo Coppe Caldeira afirma que – No Simpósio Temático organizado por mim e pela a professora Gizele Zanotto para o XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH realizado na USP, observou-se o interesse crescente suscitado por este filão de pesquisa. Surgem algumas pesquisas sobre a atuação de bispos e leigos conservadores, de jornais católicos e, especialmente, um interesse pelo anticomunismo católico.