Refletindo sobre a vida da nova bem-aventurada, procurei os motivos pelos quais esse reconhecimento formal concedido pela autoridade da Igreja Católica era tão caro para mim.
Guadalupe foi uma pessoa muito próxima a nós. Não me refiro somente ao tempo em que viveu, logo ali, no século passado. A proximidade que me atrai em Guadalupe, se refere à sua vida comum, simples, como a da maioria de nós. E o mais empolgante: como ficará atestado sem sombra de dúvidas, ela se tornou santa, ou seja, se santificou, justamente na comunice do “day by day”.
Guadalupe Ortiz de Landázuri foi uma das primeiras mulheres que passou a formar parte do Opus Dei (que fora fundado poucos anos antes por São Josemaría Escrivá). Esse fato pode fazer alguém pensar que seria o suficiente para torná-la diferente da maioria das pessoas. Entretanto, ao contrário dessa ideia, aquele acontecimento que mudou tudo na vida daquela jovem mulher, foi o que ao mesmo tempo a burilou para que pudesse ser luz e exemplo para milhares e – por que não? – milhões de pessoas comuns depois dela, sem a necessária ligação com o Opus Dei.
Aliás, quando a Igreja proclama um filho seu como bem-aventurado ou como santo, ela faz exatamente isso: destaca-o do seu círculo reduzido de conhecidos e apresenta-o como modelo, guia e amigo para toda a imensa família católica.
E para apresentá-la a todos, poderíamos falar aqui de tantos aspectos da vida de Guadalupe, mas perderíamos o propósito dessas poucas linhas. Também não gostaria de somente me limitar a traçar elogios genéricos de suas virtudes cristãs, muitas delas realmente destacadas, como sua caridade delicada, sua alegria constante, sua disponibilidade generosa, seu intenso profissionalismo… Gostaria de destacar duas características da vida de Guadalupe que me marcaram muito quando os conheci e que podem estimular a outras pessoas. Uma delas nota-se logo nos primeiros anos de sua vida. A outra é o fruto maduro da sua etapa final, após anos de cultivo paciente das virtudes.
No início da sua vida adulta, um evento duríssimo ocorreu, impactando toda a sua família. Guadalupe era filha de um militar de alta patente numa época especialmente conturbada da história recente da Espanha, seu país de origem. Em 1936 estourou uma guerra civil. Seu pai foi condenado à pena capital pelo governo que estava a instalar-se naquela região do país. A família de Guadalupe era composta pelo pai, a mãe e de outros dois irmãos homens. Na véspera do fuzilamento do pai, com exceção de um dos filhos (que estava na outra zona do país), toda a família passou a noite reunida para se despedir.
Eu muitas vezes tentei imaginar o que teriam sido aquelas horas amargas para aquelas pessoas e duvido que sejamos capazes de calcular o que significou esta tragédia. Não é difícil que cresça em nós uma revolta avassaladora diante da execução de um homem jovem, de bem, honesto, pai de uma família tão bonita. Mas se tal sentimento passou pelo coração de Guadalupe, certamente não se desenvolveu. É impossível negar que o evento não a tenha marcado para sempre. Diria que ele ajudou – e muito – a configurar a sua personalidade. Cada vez nos habituamos mais a estudar e buscar resolver os “traumas da vida”. Às vezes isso se torna quase uma obsessão. E o que, por um lado, pode ser uma belíssima ocasião de libertação de mecanismos às vezes inconscientes, muitas vezes é usado como desculpa para que não haja uma modificação de comportamentos pouco virtuosos.
Nesse aspecto penso que Guadalupe tem a nos oferecer um magnífico exemplo de aceitação da vida como ela é, ainda que injusta por causa das injustiças perpetrados pelos homens contra os homens. Aquela jovem mulher aprendeu numa condição extrema a perdoar: a perdoar os responsáveis diretos e indiretos pela execução do pai, a perdoar a vida por não ser fácil e finalmente a perdoar a si mesma, aceitando sua condição impotente.
Conhecendo o desenrolar de sua vida, vemos que ela se tornou uma pessoa alegre, de riso fácil, leve, e que ao mesmo tempo era exigente consigo mesma. Ou seja, sua dura experiência não a tornou uma pessoa amarga, revoltada com a vida ou uma pessimista acomodada.
A outra característica de Guadalupe que destacaria agora era a sua simplicidade e desprendimento em relação à sua saúde. Já em meados da sua fase adulta ela desenvolveu uma doença valvular cardíaca causada por um episódio de febre reumática na infância. Ao longo dos anos, a falta de ar, o cansaço de origem cardíaca e os episódios de edema pulmonar com sensação de afogamento se tornaram cada vez mais e mais frequentes. Sua doença paulatinamente se agravou até que o mal-estar físico fosse seu inseparável companheiro até a derradeira cirurgia e a crise de insuficiência cardíaca que a levou deste mundo. É bonito e edificante ler os testemunhos das pessoas que a conheceram de perto nas suas últimas décadas de vida. Já com a saúde muito comprometida, sempre procurava se superar para tentar levar vida normal. E, quando não era possível, se submetia aos tratamentos e necessidades especiais sem dramas e sem concessões preguiçosas. Nos períodos convalescentes a vemos sempre estudando e até preparando seu doutorado em química.
Gosto da figura de Guadalupe porque me faz pensar que a vida, quase sempre e para todo mundo é cheia de percalços, dificuldades, dores e sofrimentos. Mas, não resta dúvidas, de que são os seus desafios que oferecem as grandes oportunidades para fazê-la realmente bela, com seus contrastes de luzes e sombras. Uma vida sem dificuldades e com o máximo de prazer parece ser o objetivo frenético da maioria de nós. E frequentemente vemos que – como ocorre na ausência do peso da gravidade em que os ossos e os músculos perdem a sua força – nas vidas que se esquivam de encarar de frente, com realismo, seus dissabores, os traumas, a revolta, o drama ou o tédio, a transformam em um triste simulacro.
Guadalupe nos revela o oposto feliz disso. Sua vida de pessoa comum, estava cheia das comuns vicissitudes, boas e ruins, como a maioria de nós. E foi assim que ela atingiu a maturidade humana e espiritual que todos nós poderemos atingir se, como ela, procurarmos em tudo, agradar a Deus na nossa vida cotidiana, como bem indicou seu querido pai espiritual, São Josemaria Escrivá. Eu espero sinceramente que a nova bem-aventurada Guadalupe Ortiz de Landázuri nos ajude a chegarmos a ser virtuosos com a mesma naturalidade e santidade com que ela viveu.
Luciana Pricoli Vilela
Médica Geriatra e Clínica Geral pela Universidade de São Paulo (FM-USP)
Especialista pela Soc. Bras. de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e pela Soc. Bras. de Clínica Médica (SBCM)