A PENA DE MORTE. REVIRAVOLTA NA DOUTRINA DA IGREJA?

Valter de Oliveira  

Valter de Oliveira

 

A execução de Archer na Indonésia trouxe de volta a questão da liceidade da pena de morte bem como de sua utilidade social.

Havia escrito um artigo defendendo – como sempre o fiz em minha vida católica – que ela não é condenada pela Igreja. Escrevera:

“Aqui há um equívoco de muita gente boa. A Igreja Católica não condena a pena de morte. S. Paulo, S. Agostinho, S. Tomás de Aquino, Vitória, no século XVI, enfim, o magistério, os catecismos católicos sempre deixaram isso claro. Ela é conforme o direito natural e com a revelação. O Diccionário de Teología Moral, de Aurelio Fernandez, faz um histórico do assunto partindo da tradição bíblica, aponta alguns juízos contrários a ela no tempo da Patrística, e depois cita que há quem, como o P. Urdanoz “sustenta que esta doutrina é uma verdade de fé, definida na profissão de fé contra os valdenses (Dz 420-426) e por Leão X contra Lutero” (Dz 773) (Suma Teológica, BAC. Madri 1956, VIII, 422)”. Na época moderna outros papas confirmaram o ensinamento. Daí, diz Fernandez, a doutrina ser sentença comum nos documentos magisteriais” (1)

O mesmo autor afirma que na época contemporânea, o “último documento pontifício que justifica a pena de morte é o de Pio XII que aduz um novo argumento: (…) Está reservado ao poder público privar o condenado do “bem” da vida, em expiação da sua falta, depois que, por seu crime, ele se despossuiu de seu “direito” à vida. (2)

Mais recentemente o documento de João Paulo II (Carta enc. Evangelium Vitae), o Catecismo da Igreja Católica (CIC) e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja pedem que a pena de morte não seja aplicada, o que seria mais de acordo com a dignidade humana e com as possibilidades que o Estado moderno teria de impedir que o criminoso continue a praticar o mal. Como já dissera o cardeal Höffner em obra de 1983  “embora tenha o direito do gládio, o Estado pode renunciar à sua aplicação. Abrir mão da aplicação da pena de morte, diz ele, vai depender das circunstâncias concretas, isto é, das necessidades do bem comum no contexto real da situação”. (3)

Em suma, a doutrina permaneceria a mesma contudo, na medida em que não é mais necessária não deveria ser aplicada.

É  o que se confirma no Catecismo da Igreja: “Na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana.”(CIC 2267).

Creio que expus fielmente o pensamento da Igreja.

Quando ia concluir o artigo ocorreu um fato inesperado. Chegou às minhas mãos, vinda de uma querida afilhada, jovem estudante de Direito,  o texto do discurso do Papa Francisco, realizado a 23 de outubro de 2014, na sala dos Papas,  à “Delegação da Associação Internacional de Direito Penal”.

Foi uma bomba.

No ponto 30, para minha perplexidade, o Papa Francisco afirma:

“São João Paulo II, condenou a pena de morte (cf. Carta enc. Evangelium vitae, 56, como também o faz o Catecismo da Igreja Católica (n. 2267). 

Por que fiquei perplexo? Porque evidenciou sua condenação da pena de morte? Não. Afinal está de acordo, penso, com sua linha de pensamento e de suas tendências teológicas.

A perplexidade vem do fato que sua afirmação não corresponde ao que  está nos textos citados. Estou equivocado? Ou o equívoco pode ser atribuído a algum ghost writer?

Sabemos que houve declarações do Papa que causaram perplexidade. Umas mais explicáveis, outras menos. Foram justificadas por porta-vozes lembrando que foram manifestações de improviso, feitas oralmente, que ele poderia estar cansado, que a mídia distorceu ou tirou de contexto o que ele dissera, e assim por diante. Agora não. O que tenho diante de mim é um texto da Santa Sé.

Penso que o texto – que contém também belíssimas passagens –  vai dar muito trabalho para ser explicado.

Gostaria de saber o que, em consciência, tenho que aceitar sobre o tema.

Cabe agora aos teólogos tentar harmonizar o que o Papa declarou com o que a Igreja sempre ensinou. Pode o fiel católico ainda afirmar que a pena de morte é conforme à Revelação, à lei natural e, portanto, conforme a lei divina?

Ficam aqui mais algumas questões. Faço-as ciente de minhas obrigações como filho da Igreja e do respeito e do carinho que devo prestar ao Santo Padre.

  1. O que o Papa quis dizer quando afirma que a questão é – em parte –  opinável?
  2. Pode haver mudança doutrinária naquilo que já foi sentença comum na Igreja?  O Papa pode mudar o que a doutrina comum considera  uma “Verdade de Fé?”.
  3. A Igreja define e analisa questões morais a partir da Revelação e da Tradição ou de análises sociológicas?
  4. Diante de questões e posturas como essa – que se avolumam na Igreja – que novas mudanças serão exigidas pela corrente progressista relativista?

Por onde passa a gota d’água passa o mar.

Observação: agradeço eventuais considerações de bispos, padres, teólogos e juristas católicos. Especialmente dos que conheço.

Comentários dos muitos amigos católicos leigos, que conhecem melhor que eu a vida e a doutrina da Igreja, são muito bem vindas. Ainda que não seja de público.

Notas:

  1. Fernandés, Aurélio. Diccionário de Teología Moral, Monte Carmelo, p. 1044 a 1049. 2.
  2. Fernandés. Op.cit. p.1049. 3.
  3. Höffner, Joseph Cardeal. Doutrina Social Cristã, Loyola, São Paulo, 1986. P.192

 

Texto integral do discurso do Papa:

https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141023_associazione-internazionale-diritto-penale.html

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