Estes dois mandamentos ajudam a viver a santa pureza (o nono) e o desprendimento dos bens materiais (o décimo) nos pensamentos e desejos.
«Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem desejarás a casa de teu próximo, nem sua terra, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu asno, nem nenhuma coisa que seja de teu próximo» (Dt 5, 21).
«Aquele que olha para uma mulher desejando-a, já cometeu adultério com ela em seu coração» (Mt 5, 28).
1. Os pecados internos
Estes dois mandamentos referem-se aos atos internos correspondentes aos pecados contra o sexto e o sétimo mandamentos, que a tradição moral classifica dentro dos chamados pecados internos. De modo positivo ordenam viver a pureza (o nono) e o desprendimento dos bens materiais (o décimo) nos pensamentos e desejos, segundo as palavras do Senhor: «Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus» e «Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (Mt 5, 3.8).
A primeira questão à qual se deve dar resposta é se faz sentido falar de pecados internos; ou dito de outro modo, por que se qualifica negativamente um exercício da inteligência e da vontade que não se concreta em uma ação externa reprovável?
A pergunta não é evidente, pois nas listas de pecados que nos oferece o Novo Testamento aparecem, sobretudo, atos externos (adultério, fornicação, homicídios, idolatria, feitiçarias, litígios, iras, etc.). No entanto nessas mesmas categorias vemos citados também, como pecados, certos atos internos (invejas, má concupiscência, avareza) [1].
Jesus mesmo explica que é do coração do homem que procedem «os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicações, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias» (Mt 15, 19). E no âmbito específico da castidade, ensina «que todo que olha para uma mulher desejando-a, já cometeu adultério com ela em seu coração» (Mt 5, 28). Destes textos procede uma importante anotação para a moral, pois fazem entender como a fonte das ações humanas e portanto da bondade ou maldade da pessoa encontra-se nos desejos do coração, naquilo que a pessoa “quer” e elege. A maldade do homicídio, do adultério, do roubo não está principalmente na expressão física da ação, ou em suas consequências (que têm um papel importante), mas na vontade (no coração) do homicida, do adúltero, do ladrão, que ao escolher essa determinada ação, está querendo-a: está se determinando em uma direção contrária ao amor do próximo e, portanto, também ao amor a Deus.
A vontade dirige-se sempre para um bem, mas em algumas ocasiões trata-se apenas de um bem aparente, algo que na situação concreta não é ordenado racionalmente ao bem da pessoa como um todo. O ladrão quer algo que considera um bem, mas o fato de que esse objeto pertença a outra pessoa torna impossível que sua escolha (de ficar com o mesmo) possa beneficiar sua pessoa, ou seja, ajudá-lo a atingir a finalidade da sua vida. Neste sentido, não é necessário executar o ato exterior para determinar a vontade em um sentido positivo ou negativo. Aquele que decide roubar um objeto, ainda que depois queira considerá-lo como um imprevisto, agiu mal. Realizou um ato interno voluntário contra a virtude da justiça.
A bondade e a maldade da pessoa acontecem na vontade e, portanto, estritamente falando teria que utilizar essas categorias para referir-se aos desejos (queridos, aceitados), não aos pensamentos. Ao falar da inteligência utilizamos outras categorias, como verdadeiro e falso. Quando o nono mandamento proíbe os “pensamentos impuros” não está se referindo às imagens, ou ao pensamento em si, mas ao movimento da vontade que aceita a eliminação desordenada que uma verdadeira imagem (interna ou externa) possa lhe provocar [2].
Os pecados internos podem ser divididos em:
— “maus pensamentos” (consentimento involuntário): são a representação imaginaria de um ato pecaminoso sem desejo de realizá-lo. É pecado mortal se tratar-se de matéria grave e se busca ou se consente em sentir prazer com ela;
—“ mau desejo ” (desiderium): desejo interior e genérico de uma ação pecaminosa com o qual a pessoa sente prazer. Não coincide com a intenção de realizá-lo (o que implica sempre em um querer eficaz), ainda que em não poucos casos se fizesse se não existissem alguns motivos que freiam a pessoa (como as consequências da ação, a dificuldade para realizá-la, etc.);
—“ gozo pecaminoso”: é a complacência deliberada de uma má ação já realizada por si ou por outros. Renova o pecado na alma.
Os pecados internos, em si mesmos, costumam ter menor gravidade que os correspondentes pecados externos, pois o ato externo geralmente manifesta uma voluntariedade mais intensa. No entanto, de fato, são muito perigosos, sobretudo para as pessoas que buscam o relacionamento e a amizade com Deus, já que:
— cometem-se com mais facilidade, pois basta o consentimento da vontade; e as tentações podem ser mais frequentes;
— presta-se-lhes menos atenção, pois às vezes por ignorância e às vezes por certa cumplicidade com as paixões, não se quer reconhecê-los como pecados, pelo menos veniais, se o consentimento foi imperfeito.
Os pecados internos podem deformar a consciência, por exemplo, quando se admite o pecado venial interno de maneira habitual ou com certa frequência, ainda que se queira evitar o pecado mortal. Esta deformação pode dar lugar a manifestações de irritabilidade, a faltas de caridade, a espírito crítico, a resignar-se com ter frequentes tentações sem lutar tenazmente contra elas, etc.[3]; em alguns casos pode levar inclusive a não querer reconhecer os pecados internos, cobrindo-os com razões sem razão, que acabam confundindo, cada vez mais, a consciência; como consequência, facilmente cresce o amor próprio, nascem inquietudes,a humildade faz-se mais custosa a humildade e a sincera contrição e pode-se terminar em um estado de tibieza. Na luta contra os pecados internos, é muito importante não dar lugar aos escrúpulos [4].
Para lutar contra os pecados internos, ajudam-nos:
— a frequência na recepção dos sacramentos, que nos dão ou aumentam a graça, e nos curam das nossas misérias quotidianas;
— a oração, a mortificação e o trabalho, buscando sinceramente a Deus;
— a humildade —que nos permite reconhecer nossas misérias sem desesperar por nossos erros—, e a confiança em Deus, sabendo que está sempre disposto a nos perdoar;
— o exercitarmo-nos na sinceridade com Deus, conosco mesmo e na direção espiritual, cuidando com esmero o exame de consciência.
2. A purificação do coração
O nono e o décimo mandamentos consideram os mecanismos íntimos que estão à raiz dos pecados contra a castidade e a justiça; e, em sentido amplo, de qualquer pecado [5]. Em sentido positivo, estes mandamentos convidam a atuar com intenção reta, com um coração puro. Por isto têm uma grande importância, já que não ficam na consideração externa das ações, mas que consideram a fonte da qual procedem as ditas ações.
Estes dinamismos internos são fundamentais na vida moral cristã, onde os dons do Espírito Santo, e as virtudes infusas são modulados pelas disposições da pessoa. Neste sentido, as virtudes morais têm uma importância particular, que são propriamente disposições da vontade e dos demais desejos para fazer o bem. Tendo presente estes elementos é possível desterrar uma verdadeira caricatura da vida moral como luta por evitar os pecados, descobrindo o imenso panorama positivo de esforço por crescer na virtude (por purificar o coração) que tem a existência humana, e em particular a do cristão.
Estes mandamentos referem-se mais especificamente aos pecados internos contra as virtudes da castidade e da justiça, que estão bem refletidos no texto da Sagrada Escritura que fala de «três espécies de desejo imoderado ou concupiscência: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (1 Jo 2,16)» (Catecismo, 2514). O nono mandamento refere-se sobre o domínio da concupiscência da carne; e o décimo sobre a concupiscência do bem alheio. Isto é, proíbem deixar-se arrastar por essas concupiscências, de modo consciente e voluntário.
Estas tendências desordenadas ou concupiscência consistem na «luta que a “carne” sustenta contra o “espírito”. “Procedem da desobediência do primeiro pecado” (Catecismo, 2515). Após o pecado original ninguém está isento da concupiscência, à exceção de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santíssima Virgem.
Ainda que a concupiscência em si mesma não seja pecado, leva ao pecado, e o produz quando não se submete à razão iluminada pela fé, com a ajuda da graça. Se esquece-se que existe a concupiscência, é fácil pensar que todas as tendências que se experimentam “são naturais” e que não há mau em se deixar levar por elas. Muitos se dão conta de que isto é falso ao considerar o que sucede com o impulso à violência: reconhecem que não há que se deixar levar por este impulso, senão dominá-lo, porque não é natural. No entanto, quando se trata da pureza, já não querem reconhecer o mesmo, e dizem que não existe nada de mal em deixar-se levar pelo estímulo “natural”. O nono mandamento ajuda-nos a compreender que isto não é assim, porque a concupiscência tem torcido a natureza, e o que se experimenta como natural é, frequentemente, consequência do pecado e é preciso dominá-lo. O mesmo se poderia dizer do desejo imoderado de riquezas, ou cobiça, a que se refere o décimo mandamento.
É importante conhecer esta desordem causada em nós pelo pecado original e por nossos pecados pessoais, já que tal conhecimento:
— nos impulsiona a rezar: só Deus nos perdoa o pecado original, que deu origem à concupiscência; e, da mesma forma, só com sua ajuda conseguiremos vencer esta tendência desordenada; a graça de Deus sana nossa natureza das feridas do pecado (além de elevá-la à ordem sobrenatural);
— ensina-nos a amar tudo que foi criado, pois tudo saiu bom das mãos de Deus; são nossos desejos desordenados que fazem com que se faça mau uso dos bens criados.
3. O combate pela pureza
A pureza de coração significa ter um modo santo de sentir. Com a ajuda de Deus e o esforço pessoal chega-se a ser a cada vez mais “limpos de coração”: limpeza nos “pensamentos” e nos desejos.
Ao que se refere ao nono mandamento, o cristão consegue esta pureza com a graça de Deus e através da virtude e o dom da castidade, da pureza de intenção, da pureza do olhar e da oração [6].
A pureza do olhar não consiste em recusar a contemplação de imagens claramente inconvenientes, mas que exige uma purificação do uso de nossos sentidos externos, que nos leve a olhar o mundo e as demais pessoas com visão sobrenatural. Trata-se de uma luta positiva que permite ao homem descobrir a verdadeira beleza de tudo que foi criado, e de modo particular, a beleza daqueles que foram reproduzidos à imagem e semelhança de Deus [7].
«A pureza exige o pudor. Este é parte integrante da temperança. O pudor preserva a intimidade da pessoa. Designa a rejeição para mostrar o que deve permanecer velado. Está ordenado à castidade, cuja delicadeza proclama. Orienta os olhares e os gestos de acordo com a dignidade das pessoas e com a relação que existe entre elas» (Catecismo, 2521).
4. A pobreza do coração
« O desejo da verdadeira felicidade afasta o homem do apego desordenado aos bens deste mundo, e terá sua plenitude na visão e na bem-aventurança de Deus » (Catecismo, 2548). “A promessa de ver a Deus supera toda felicidade. Na Escritura, ver é possuir. Aquele que vê a Deus obtém todos os bens que podemos imaginar” [8].
Os bens materiais são bons como meios, mas não são fins. Não podem encher o coração do homem, que foi feito para Deus e que não se sacia com o bem-estar material.
«O décimo mandamento proíbe a avareza e o desejo de uma apropriação imoderada dos bens terrenos. Proíbe o desejo desordenado nascido da paixão imoderada das riquezas e de seu poder. Proíbe também o desejo de cometer uma injustiça mediante a qual se prejudica ao próximo em seus bens temporais» (Catecismo, 2536).
O pecado é aversão a Deus e conversão às criaturas; o apego aos bens materiais alimenta radicalmente esta conversão, e leva à cegueira da mente, e ao endurecimento do coração: «se alguém possui bens e vendo que seu irmão padece necessidade, fecha seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?» (1 Jo 3,17). O desejo desordenado dos bens materiais é contrário à vida cristã: não se pode servir a Deus e às riquezas (cfr. Mt 6, 24; Lc 16,13).
A exagerada importância que se concede hoje ao bem-estar material acima de muitos outros valores, não é sinal de progresso humano; supõe uma diminuição e envilecimento do homem, cuja dignidade reside em ser criatura espiritual chamada à vida eterna como filho de Deus (cfr. Lc 12,19-20).
«O décimo mandamento exige que a inveja seja banida do coração humano » (Catecismo, 2538). A inveja é um pecado capital. «Manifesta a tristeza sentida diante do bem do próximo» (Catecismo, 2539). Da inveja podem derivar-se muitos outros pecados: ódio, murmuração, detração, desobediência, etc.
A inveja supõe uma rejeição da caridade. Para lutar contra ela devemos viver a virtude da benevolência, que nos leva a desejar o bem ao próximo como manifestação do amor que lhes temos. Ajuda-nos também nesta luta a virtude da humildade, pois não devemos esquecer que a inveja provém muitas vezes do orgulho (cfr. Catecismo, 2540).
Pablo Requena
Bibliografía básica
Catecismo da Igreja Católica, 2514-2557.
Leituras recomendadas
São Josemaria, Homilia Porque verão a Deus, em Amigos de Deus, 175-189; Homilia Desprendimento, em Amigos de Deus, 110-126.
[1] Cfr. Ga 5, 19-21; Rm 1, 29-31; Col 3, 5. S. Paulo depois de fazer um apelo a abster-se da fornicação, escreve: «que cada um saiba guardar seu corpo em santidade e honra, não com afeto libidinoso, como os gentios que não conhecem a Deus (…), pois Deus não nos chamou à impureza, senão à santidade» (1 Ts 4, 3-7). Sublinha a importância dos afetos, que são a origem das ações, e faz ver a necessidade de sua purificação para a santidade.
[2] Deste modo facilmente se entenderá a diferença entre “sentir” e “consentir”, referido a uma determinada paixão ou movimento da sensibilidade. Só quando se consente com a vontade é que se pode falar de pecado (se a matéria era pecaminosa).
[3] «Chapinhas nas tentações, pões-te em perigo, brincas com a vista e com a imaginação, falas de… disparates. E depois te assustas por te assaltarem dúvidas, escrúpulos, confusões, tristeza e desalento.» (São Josemaria, Sulco, 132).
– “Tens de admitir que és pouco consequente” (São Josemaria, Sulco, 132).
[4] «Não te preocupes, aconteça o que acontecer, desde que não consintas. – Porque só a vontade pode abrir a porta do coração e introduzir nele essas coisas execrandas.» (São Josemaria, Caminho, 140); cfr. Ibidem, 258.
[5] «O décimo mandamento refere-se à intenção do coração; resume, com o nono, todos os preceitos da Lei» (Catecismo, 2534).
[6] «Com a graça de Deus consegue-o: mediante a virtude e o dom da castidade, pois a castidade permite amar com um coração reto e indiviso; mediante apureza de intenção, que consiste em buscar o fim verdadeiro do homem: com um olhar limpo o batizado procura encontrar e realizar a vontade de Deus em todas as coisas (cfr. Rm 12, 2; Col 1, 10); pela pureza do olhar, exterior e interior; pela disciplina dos sentimentos e da imaginação; pela rejeição a toda complacência nos pensamentos impuros que o inclinam a afastar-se do caminho dos mandamentos divinos: “a vista desperta a paixão dos insensatos” (Sb 15, 5); mediante a oração» (Catecismo, 2520).
[7] «Os olhos! Por eles entram na alma muitas iniquidades. —Quantas experiências como a de David!… —Se guardais a vista tereis assegurado a guarda de vosso coração» (São Josemaria, Caminho, 183). « Meu Deus !: encontro graça e beleza em tudo o que vejo: guardarei a vista em todas as horas, por Amor» (São Josemaria, Forja, 415).
[8] São Gregório de Nisa, Orationes de beatitudinibus, 6: PG 44, 1265A. Cfr.Catecismo, 2548.
Fonte: http://www.opusdei.org.br/pt-br/article/tema-38-o-nono-e-o-decimo-mandamentos-do-decalogo/